Sindical

A tragédia de Saco e Vanzetti e a greve dos Municipários de Cachoeirinha – lições e fantasmas ressurgindo

Texto originalmente publicado aqui.
Em 15 de abril de 1920 houve um assalto a uma fábrica de sapatos no estado de Massachusettes, nos Estados Unidos. A paranoia repressiva estadunidense identificou dois “elementos perigosos” de então. Fernando Nicola Sacco, sapateiro, e Bartolomeo Vanzetti, vendedor ambulante (vendia peixes), imigrantes italianos e militantes sociais de ideologia anarquista foram considerados culpados. Em julho de 1921 os jurados os consideraram culpados, mesmo sem haver uma prova contundente sequer. No dia 23 de agosto de 1927, Sacco e Vanzetti foram assassinados pelo estado na cadeira elétrica. Durante todo o processo de condenação e apelação jurídica, o mundo industrial e urbano viu o maior movimento de solidariedade internacional até então existente no planeta. Desde então, quase todos os casos envolvendo militância social de ideologia anarquista e prática libertária tem no fantasma de Sacco e Vanzetti uma tragédia em forma de farsa que se repete e repete. Em menor escala, com outros níveis de agressão sistemática – como a brutal repressão de evacuação da Câmara de Vereadores do município em 30 de março de 2017, perpetrada pela Brigada Militar atendendo a solicitação do presidente da casa, o vereador Marco Barbosa (PSB)- vemos algo semelhante em andamento.
A tentativa de criminalização da greve dos Municipários
No dia 3 de abril de 2017, a greve dos municipários de Cachoeirinha completava 29 dias ininterruptos, adentrando no início da quinta semana do movimento. A entidade que organiza a luta, o Sindicato dos Municipários (SIMCA) tem uma história recente plena de luta direta e mobilização de base. Fundado em 20 de junho de 1989, desde então vem encabeçando uma luta constante, com picos de atuação, tanto em solidariedade a outras iniciativas e reivindicações, como no esforço formativo além do combate direto pelos direitos dos associados. Mas, como sempre ocorre na luta popular, quanto maior a capacidade de reivindicar e conquistar sem utilizar as armas dos dominantes, maiores os riscos para a criminalização e a sabotagem através de guerra suja.
O primeiro ato repressivo, antes mesmo do início da greve de 2017, foi a abertura de Processo Administrativo (PAD) referente à greve de setembro de 2016,quando cinco membros da categoria e militantes do SIMCA foram escolhidos a dedo. Como alvo do Processo, e segundo o próprio sindicato, as motivações são racistas e incluem acusações infundadas. A bandeira do Arquiva PAD contra militantes do SIMCA já trazia uma acumulação de resistência para a categoria. Mas, não parou por aqui.
Ao longo da greve dos municipários, o gabinete do prefeito e a Prefeitura foram arrombados duas vezes ao menos, talvez três caso se comprove outra denúncia. Trata-se no mínimo de ato suspeito. Jamais uma direção sindical ciente de suas responsabilidades e em pleno andamento de uma greve que ganha visibilidade nacional iria cometer um ato desta semelhança. Se isso não for uma sabotagem vinda do andar de cima e um intento de criminalizar a heroica greve da categoria Municipária, então é muita, mas muita coincidência.
Se recuarmos no tempo e observarmos a greve de fome anterior (a de 2013) e a quebra fraudulenta da Previdência dos servidores do município (IPREC), logo não fica difícil de perceber o porquê da origem do rombo nas contas da prefeitura e como covardemente as últimas duas administrações locais colocam o preço salgado a ser pago nas costas da categoria e da direção sindical. Infelizmente, esta história está longe do desenlace e além da repressão física e brutal da última 5ª (30 de março de 2017), veremos inquéritos administrativos para tentar demitir militantes sindicais de ilibada e reconhecida reputação.
Conforme já dissemos, antes mesmo da greve começar já havia dois Processos Administrativos (PAD) e há uma chance concreta da administração do prefeito Miki Breier (PSB) abrir outros semelhantes.
O que pode haver de nacional em uma greve local?
O tema mais importante deste artigo não é a excepcionalidade da luta sindical em Cachoeirinha. O próprio SIMCA convidou no início de 2017 o sindicato coirmão de Florianópolis para dar um relato de como a categoria dos trabalhadores municipais da capital do estado de Santa Catarina venceu sua luta contra o arrocho e a repressão do prefeito local. Embora nem de longe seja a maioria da orientação sindical no país, existem diversas gestões e diretorias sindicais que conseguem manter uma postura e conduta classista, aumentando a democracia de base e a participação da categoria. Ou seja, este é um fator inicial, mas não único.
A soma dos fatores é que faz da Greve dos Municipários de Cachoeirinha ser única. Primeiro, pela presença de mais de uma década de militantes libertários no município e na região, incluindo a prática sindical da atual diretoria eleita. A participação interna é elevada, à altura do terrorismo com os funcionários e a boataria como arma de desmonte da capacidade de mobilização. Ao encontro desta combatividade está a conduta, pois ao não priorizar a arena eleitoral – e sequer desta participar – os e as sindicalistas de matriz libertária ficam “imunes” da politicagem típica de municípios médios ou pequenos, periféricos, metropolitanos, cidades pólo ou interioranas. A gangorra é assim: quando se entra na jogatina eleitoral, o sindicalista municipário de um ano ímpar pode participar da gestão seguinte e logo alterar sua função. De combativo de ocasião passa a conciliador e leva e trás por convicção e conveniência. Ao ficar imune deste aliciamento fatal, a base sindical mobilizada se torna mais convicta, classista e com independência de movimentos.
Outro fator importante é a formação política interna. Quando a categoria entende os processos de orçamento público, Lei Orçamentária do município, repasses do governo federal e a presença do capital fictício e especulativo através da gestão dos fundos previdenciários da base concursada, logo, há uma maior energia de engajamento. Os recursos discursivos do demagogo de plantão (a típica “lenga lenga” do prefeito de turno) não tem muita penetração. Na ausência de convencimento, a tendência é os poderes locais se fecharem, como fizeram os vereadores na quinta feira dia 30 de março, ao não permitirem a presença nas galerias da Câmara Municipal aos sindicalistas de base ali presentes. A repressão subsequente e a violência política também estão ligadas às relações da microrregião, onde oficiais da polícia militar estadual sempre estão vinculadas às pequenas autoridades locais e os escritórios de representação de deputados estaduais e federais com base (“curral”?) na mancha urbana.
A constituição da base sindical municipária em Cachoeirinha é muito importante. Ao unificar no mesmo sindicato a trabalhadores de formação universitária, de nível médio e fundamental, a unidade de classe demonstra seu vigor. No Brasil, infelizmente, sobram municípios onde associações locais por categoria de trabalho – formação, função e diploma corporativo – não permitem a unidade de todas e todos os servidores/as do município. Assim, na divisão sóciotecnica do trabalho, a classe simplesmente não se manifesta em toda sua pujança. Ao contrário, fica subsumida à ética (e ao ethos) das profissões e todo o ridículo da hierarquia social de acordo com o diploma e o tipo de concurso. Com a Constituição de 1988 e a obrigatoriedade de ingresso no serviço público mediante concurso, a base sindical dos municipários aumenta exponencialmente e o perfil do funcionalismo também. Esse choque de culturas no mundo do trabalho precisa de um sindicato unificado, com sentido de classe, tal e qual o Simca na atual diretoria.
Como o município é o nível de governo mais visível para a população brasileira e muito notado pela base da pirâmide social, os e as municipárias são o elo mais forte e mais fraco do serviço público. Mais fraco pela ordem dos salários médios, modestos se comparados com os demais poderes existentes em nível estadual e federal. Ao mesmo tempo, pela percepção direta de sua existência, os trabalhadores municipais são uma fortaleza do serviço público e representam as chances concretas de tornar mais público o aparelho de Estado, ao ponto de em alguns momentos, em plena democracia indireta, representativa, liberal-conservadora, podermos falar de duplo poder local.
Considerando que na estrutura do Estado brasileiro o município não tem Poder Judiciário e conta com limitada força repressiva – ainda mais quando a guarda local é sindicalizada – a duplicidade do poder também implica em um elevado grau de ameaça e de violência política. Não me refiro especificamente a este ou aquele município, mas simplesmente aos ataques e atentados existentes nas eleições municipais de 2016, as primeiras após o golpe jurídico-midiático-parlamentar que derrubaram o governo da ex-esquerda. Com a elevação do conflito local, a tendência é fazer valer a máxima dos Hermanos uruguaios “Pueblo chico infierno grande” (cidade pequena, inferno grande).
Apontando conclusões
A greve de 2017 começa em função de uma sessão plenária da Câmara de Vereadores local, onde a casa, cercada pela polícia e sem povo na galeria, votou a favor de um pacote de “salvação econômica” do município, onde ao fim e ao cabo a conta seria – talvez seja – paga pela categoria dos municipários. A dívida da Prefeitura tem outras origens como já demonstradas neste texto e em riqueza de detalhes nesta nota do SIMCA, incluindo saldo devedor do atual vice-prefeito.
Na sessão de 30 de março de 2017, novamente uma Câmara sem povo vota pelo arrocho e utiliza a Brigada Militar para reprimir com vontade a militância acampada na frente da casa legislativa. Além de mais de trinta feridos, três militantes foram presos e por pouco um não foi recolhido para o Presídio Central! Ou seja, o precedente está aberto, e por distintas vias, podemos ter um incremento repressivo, ou uma fábrica de calúnias, ou a combinação de instrumentos combinados.
O exemplo de Cachoeirinha ultrapassa os limites do município e pode abrir um precedente das greves e movimentos sindicais e populares tendo como estrutura vertebral a categoria dos municipários. Como tal, isso pode implicar tanto em uma vitória popular em tempos de resistência contra a agenda regressiva, mas também em permanente ofensiva da reação – começando em nível local – com consequências trágicas e incontroláveis.
Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais
(www.estrategiaeanalise.com.br / E-mail e Facebook: blimarocha@gmail.com / Twitter:@estanalise)

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