[Maria Iêda] Contra ditadores e senhores: o que a onda antifascista e a morte de Miguel têm em comum além do coronavírus
A nova onda de manifestações contra o governo Bolsonaro trouxe o antifascismo de volta ao debate público. Porém, entre Xuxa se declarar antifascista e afirmar que não é de esquerda nem de direita e o presidente associar antifascista a terrorista, tem muita confusão no ar. No compasso da conjuntura, o antirracismo se amplifica: nos Estados Unidos, o assassinato de George Floyd impulsionou o imaginário popular contra o racismo estrutural. Em Pernambuco, a morte do menino Miguel, de 5 anos, atrai gente para as ruas e nos lembra da importância da luta do povo negro contra o racismo que se reproduz desde a colônia. Essas lutas não só acontecem conjuntamente durante a pandemia, como historicamente estão ligadas à luta dos movimentos de esquerda pela emancipação popular.
Todo antifascista tem de ser antirracista. Sempre.
Vamos começar do começo pois História não é bagunça: antifascismo é, na raiz, se opor ao fascismo. E um dos principais troncos do discurso fascista é a SUPREMACIA BRANCA. Por isso, todo fascismo é racista. Todo. Além do caso indiscutível da Alemanha nazista, tanto a Itália de Mussolini, quanto o Integralismo no Brasil eram racistas – mesmo que este último afirmasse que não.
O fascismo italiano concebeu um “racismo místico” e caucasiano com leis que perseguiam politicamente o povo judeu, ou que simplesmente massacravam à época os povos de África com o seu imperialismo, sendo estes perseguidos de forma aberta e brutal, e os primeiros por meio da discriminação pura e simples, sob o lema “discriminar não significa perseguir”. Já o Integralismo defendia que os povos indígenas e afrodescendentes deveriam obrigatoriamente se fundir aos ideiais da “civilização cristã” de origem portuguesa, perdendo assim suas características e particularidades em nome de uma suposta raça mestiça autenticamente brasileira.
Aqui no Brasil, e especialmente em Pernambuco, o racismo é parte de nossa História e de nossas práticas. Resquícios coloniais estão presentes de forma descarada. A casa-grande permanece perseguindo e massacrando o aquilombamento do povo negro e pressionando-o em direção à senzala. Em meio a uma democracia de fachada e burguesa, decretou-se às negras e negros uma liberdade que nunca foi vivida de fato. O povo negro continua com poucos direitos ou com nenhum, em indíces alarmantes de pobreza e precariedade. As mulheres negras são as que mais sofrem com os hábitos coloniais que seguem existindo, sendo empurradas a formar um exército de trabalhadoras domésticas para servir à casa-grande.
O caso do menino Miguel Otávio Santana é retrato disso. Aos 5 anos de idade, Miguel faleceu após despencar dos absurdos 35 metros de altura das Torres Gêmeas enquanto a patroa de sua mãe fazia as unhas. A mãe, trabalhadora doméstica, recebeu a ordem de passear com o cachorro e teve de deixar o filho aos cuidados de Sarí Gaspar Côrte Real, esposa do prefeito de Tamandaré. Patroa e prefeito, aliás, pertencem a oligarquias tanto empresarial quanto política. Assim, compõem uma aristocracia bem típica desta eterna capitania. E é simbólico que esta fatia da elite resida na dupla de prédios de luxo que ameaça o caráter popular do bairro de São José e demarca um projeto de higienização da cidade.
A morte de Miguel é mais um ato de racismo cometido pela elite desta terra de atmosfera colonial. Mesma elite que aposta na fascistização da sociedade e da política quando oportuno. Sem arrodeios, racismo e tirania andam sempre de mãos dadas. E, por isso, se opor ao fascismo é também se opor ao racismo.
Somos antifascistas porque somos de esquerda
Tanto fascismo como racismo são males modernos gerados e reforçados pelo capitalismo e pelo colonialismo. Por isso e não por acaso, foram combatidos pelos movimentos de esquerda, que em substância sempre se demarcaram como anticapitalistas e contra as opressões. E faz sentido. Movimentos de caráter socialista que tinham como pauta a libertação ampla e irrestrita do povo e da classe trabalhadora combateram estes males e foram também protagonistas da luta antifascista .
Na primeira metade do século XX, houve forte presença de amplos setores revolucionários e socialistas que se opunham ao fascismo. Em Roma, a “Arditi del Popolo” (Resistência do Povo) foi pioneira na resistência a Mussolini. A “Schwarze Scharen” (Rebanho Preto, ou Tropas Pretas), na Alemanha foi criada para proteger reuniões do sindicato anarcossindicalista União dos Trabalhadores Livres da Alemanha (FAUD) e da Juventude Anarquista. Na Espanha, o feminismo da Mujeres Libres e o sindicalismo da CNT combateram frontalmente as tropas fascistas do general Franco em 1936. No Brasil, o Comitê Antifascista (composto por anarquistas) e a Frente Única Antifascista (FUA) (trotskista), enfrentamentaram os integralistas durante a década de 1930, com destaque para a batalha de rua conhecida como “A revoada das galinhas verdes”.
O antifascismo, portanto, se originou e continua no seio das lutas socialistas. Vale lembrar que as cores da bandeira “antifa” são vermelha e preta pois representam o sangue dos que lutaram e o luto pelos que tombaram na busca por uma sociedade igualitária. As figurinhas e memes que vêm circulando com outras cores podem mesmo ser muito bonitas e engraçadas, mas também podem servir para transformar uma ideia tão necessária e urgente em mais uma piadinha de internet.
Da história às cores, o antifascismo é de esquerda.
Fascismo e racismo têm de ser destruídos
Declaramos isto porque a direita, além de nos roubar todos os dias via políticas de Estado, agora quer apagar o que o sangue de milhões gravou nas páginas da História. Fascismo é, em último caso, o nome que devemos dar para as atrocidades que eles defendem. E terrorismo é o que faz o governo Bolsonaro: jogar o povo à miséria no meio de uma crise sanitária mundial. Enquanto nós, antifascistas e de esquerda, integramos movimentos que distribuem mantimentos e kits de limpeza e tentamos, com muito suor e sacrifício, assegurar a resistência da população negra e pobre neste momento tão dramático.
A família de Miguel não deveria estar trabalhando. Ele não deveria estar perdido naquelas torres enquanto patrões com ares de sinhô e sinhá continuam apreciando a vista que privatizaram, como uma afronta. Miguel tombou por racismo. Sua família e milhões de outras estão sofrendo as consequências de ideias e práticas que, estas sim, deveriam ser jogadas no fosso de uma História que não queremos que exista mais.
Antifascismo é romper com tiranos. Antirracismo é romper com os senhores. Nada mais antifascista que apoiar a luta do povo preto.
A resistência é vermelha. A resistência é negra.
Arriba las que luchan! Arriba los que luchan!
Miguel, presente.
Organização Anarquista Maria Iêda