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Uma indianista anarquista olhando Marx

Marina Ari

tradução: GT Agrário da CAB

Este artigo foi proposto como uma resposta ao texto de David Ali intitulado “É possível pensar Marx a partir do Indianismo – Katarismo?” (Pukara No. 149) [1]. Escrito por Marina Ari, historiadora e membro da Comunidade Pukara, e publicado no numero seguinte do mesmo veículo, em fevereiro de 2019, antes do golpe na Bolívia, em novembro, que derrubou o governo Evo Morales. Esta tradução vem no esforço de buscar e reunir reflexões e experiências no campo das questões camponesas, indígenas e dos povos das florestas desde o ponto de vista do anarquismo.

Como também contribuir com o debate sobre as lutas não urbanas, do campo, das florestas e das águas e a necessidade de busca e elaboração de ferramentas de análise que partam da realidade destes povos, ou que dialoguem com eles. Ficam evidentes os limites do marxismo e do leninismo nesse sentido, e é importante a reflexão sobre até que ponto a esquerda não reproduz a mesma lógica integracionista do Estado. Para nós anarquistas, coloca desafios na caminhada pelo poder popular e transformação social, entendendo como fundamental para a luta social a aliança entre campo e cidade; popular indígena, preta, camponesa.

Vamos ao texto

A desafiante pergunta do Sociólogo David Ali Condori “É possível pensar Marx a partir do Indianismo-Katarismo?”, em seu artigo publicado no número 149 (janeiro de 2019) do Periódico Pukara, é como uma constante badalada de sino que não deixa relaxar; não se esqueçam que, na Bolívia, supostamente vivemos em um regime marxista com um libertador do tipo Fidel Castro e tudo, só que vestido com mantas andinas de grife, aviões e carros de luxo, um museu próprio a sua figura e um palácio com jacuzzi.

A pergunta inteligente e precisa que Ali faz me traz à memória algo que escreveu Engels, quando em 1849 os EUA tomaram a Califórnia por cima dos direitos territoriais do México. Engels dizia:

Na América presenciamos a conquista do México, que ficamos satisfeitos. Constitui um progresso (…) É no interesse de seu próprio desenvolvimento que o México estará em um futuro sob a tutela dos Estados Unidos. É no interesse do desenvolvimento de toda América que os Estados Unidos, mediante a ocupação da Califórnia, obtêm o predomínio sobre o Oceano Pacífico… (Engels, 1972:183).

Sem esquecer a extraordinária sorte que Engels atribui à Califórnia por ter sido arrebatada dos “preguiçosos” e “indolentes” mexicanos:

Ou, por acaso, é uma desgraça que a magnífica Califórnia tenha sido arrancada dos preguiçosos mexicanos, que não sabiam o que fazer com ela? (É uma desgraça) que os enérgicos ianques, mediante a rápida exploração das minas de ouro (…) aumentem os meios de circulação (…) criem grandes cidades, estabeleçam rotas de embarcações a vapor (…) abram (…) o Oceano Pacífico à civilização (…). A ‘independência’ de alguns espanhóis na Califórnia e Texas sofrerá com isso, talvez; a ‘justiça’ e outros princípios morais talvez sejam violados aqui e ali, mas o que importa isso frente a tais feitos histórico-universais? (Engels, 1972:189-90)

A “justiça” e outros princípios morais violados que os marxistas consideram danos colaterais, aplicam-se de forma mais aguda nos povos indígenas, qualificados como bárbaros, situados – no melhor dos casos – na etapa do feudalismo e, por isso, constituem parte daquilo que o capitalismo deve arrasar, como etapa necessária a ser vencida pela revolução do proletariado.

Os índios, no contexto classista desejável para o marxismo – como é a etapa da burguesia versus proletariado – somos somente um obstáculo, um peso que deve ser aniquilado pela industrial e “vigorosa” burguesia para dar lugar ao proletariado, por isso não é estranho que o marxismo, durante a invasão europeia, coloque-nos como bárbaros com destinos inevitáveis: “os índios dos chamados povos do Novo México, os mexicanos, centroamericanos e peruanos da época da conquista se encontravam no estágio médio da barbárie” (Engels, 1972:29-30). Esses pensadores foram fruto da instauração do positivismo que projetava que a história era linear e progressiva, por isso defendiam que os processos político-econômicos estavam sujeitos ao progresso (ideia fundamental do positivismo), e como bons alunos de Hegel beberam das visões do filósofo alemão que propunha que a expressão mais elevada do pensamento humano se produzia na Europa com a modernidade. Claro, o pai do positivismo propôs a superioridade europeia sobre outros “territórios” que qualificou como “imaturos”. Europa, dona da história, ao “expandir-se” entregava à história os territórios vassalos que não existiam nem eram representados. Não é estranho, então, que o aniquilamento de povos originários do “novo mundo” (qualificados como “imaturos” e impotentes”) lhe pareça inevitável:

Tinham uma cultura quando foram descobertos pelos europeus, e a perderam ao entrar em contato com eles (…) tratava-se de uma cultura natural, que morreria assim que o espírito se aproximasse dela. A América sempre se revelou e continua a revelar-se impotente tanto física quanto espiritualmente. Os indígenas, desde o desembarque dos europeus, têm morrido sob o sopro da atividade europeia. Nos próprios animais existe a mesma inferioridade que nos homens… (Hegel, 2005: 266).

Coincide com o pensamento de Hegel quando Engels fala da subjugação da América e de seus habitantes como sem importância em face dos fatos históricos universais? Claro, é fruto da raiz hegeliana, ou seja, raiz positivista e eurocêntrica. Marx e Engels falam como europeus e a partir da visão da Europa.

Hegel já se referia de forma supremacista aos povos índios irmãos da América do Norte ao conceituá-los como fracos e inferiores, diante da superioridade europeia: “Esses povos de cultura fraca perecem quando entram em contato com povos de cultura superior e mais intensa” (Hegel, 2005: 267). Ele vai se referir a nós, índios da América do Sul, como subservientes, submissos e desprovidos de auto-estima, como selvagens e sem “espírito”; e sem capacidade educacional; isto é: inferiores:

Lê-se nas descrições de viagens histórias que demonstram a submissão, a humildade, o servilismo que estes indígenas manifestam para com o criollo e ainda mais para com o europeu. Ainda falta muito para que os europeus acendam na alma dos nativos um sentimento de auto-estima. Nós os vimos na Europa, caminhando sem ânimo e quase sem capacidade para a educação. A inferioridade desses indivíduos se manifesta em tudo, até na estatura… (Hegel, 2005: 267).

É o positivismo com sua ideia de progresso que nos vê como retardados, adultos feito crianças, subdotados sem pensamento ou objetivo: “Assim, pois bem, os americanos vivem como crianças que se limitam a existir, longe de tudo o que significa pensamentos e objetivos elevados” (Hegel, 2005: 267).

No projeto marxista nem existimos, apesar dos esforços do grande pensador peruano J.C. Mariátegui, que tentou forjar que o índio é o verdadeiro proletário; não somos, e portanto nos tornamos necessariamente dispensáveis pra o marxismo, pois para que a teoria da história das lutas de classes se cumpra com a destruição de uma das classes antagônicas, como a burguesia, precisamos morrer para dar lugar à formação do proletariado. Para o marxismo, somos obstáculos, bárbaros que foram excluídos desse processo. É por isso que Engels nos descreve como “povos sem história”; aliás, Engels se inspirou em Hegel que se referia por essa categoria aos povos que não podiam ser estruturados em nações. Marx e Engels aplaudiram o colonialismo britânico na Índia, caracterizando-o como progressista porque, como na China, eram sociedades pré-capitalistas; Na sua concepção, são “parte das nações mais bárbaras”/ que / estavam destinadas a serem invadidas e modernizadas à força pelo novo e dinâmico sistema social que era o capitalismo” (Anderson, 2012).

A base hegeliana no marxismo é clara, quando Engels distingue os povos com história daqueles “sem história”, toma como base a teoria marxista linear evolutiva para postular que esses povos pré-capitalistas, bárbaros e agrários, “deveriam ser forçados à civilização e sucumbir a um inevitável processo de assimilação” (Tarcus, 2008: 13) e embora Marx perceba a importância do colonialismo europeu, ele o considera como um “instrumento inconsciente da história” (Tarcus, 2008: 13) sendo que, no degrau seguinte de sua teoria, representa o estabelecimento capitalista como um passo anterior à revolução social, portanto é progressista (atenção, o conceito favorito do positivismo), como progressistas serão as consequências da subjugação dos povos considerados pré-capitalistas. A nossa extinção como povos indígenas é um requisito para a “evolução”, que é o capitalismo, a ser posteriormente derrotado. Porque não fazemos parte DA história europeia e nem do seu projeto em que “A burguesia exerceu… uma ação essencialmente revolucionária. Onde quer que se tenha conquistado o Poder, foram pisoteadas as relações feudais, patriarcais e idílicas” (Marx, 2000: 29), neste esquema linear os índios (pior, as mulheres indígenas) somos “reacionários” por não podermos ser proletários, e nesta situação, elementos destinados a sucumbir. Visão legada do eurocentrismo porque “o materialismo histórico não rompe com a transversalidade da diferença imperial, mas a assume, como categoria implícita de sua teoria da história, para dar lugar, a partir de uma metodologia de interpretação que lhe é específica, a uma leitura intencional dentro da qual o significado histórico é subtraído dos processos e atores que se apresentam no cenário latino-americano …” (Güendel, 2011: 97).

No entanto, apesar de que eu não resgato Marx por considerar que o marxismo expulsou os índios (com a recomendação de arrasamento) da área dos temas do materialismo histórico, estou de pleno acordo com meu amigo David Ali, na última parte do seu artigo, quando determina o declínio do sistema capitalista:

Porém, o sistema capitalista está em crise com o aquecimento global, porque sua racionalidade baseada no “meio-fim” se traduz em dominação e acumulação; e essas conduzem à negação da vida. Portanto, continuar apostando nesse sistema é ir no caminho do suicídio coletivo… (Ali 2019).

Concordo com a proposta da necessidade de anular esse sistema brutal que também vem do positivismo. Mas concordo ainda mais com sua ideia de Pachakuti: “o retorno ao paradigma da vida, fundado em outra racionalidade, onde o fim seria a afirmação e reprodução da vida e assim sair do antropocentrismo moderno que coisificou o mundo” (Ali 2019). Concepção que nada tem a ver com o marxismo. Embora o capitalismo tenha imposto brutalmente a incorporação da tecnologia do trabalho para extrair, transformar e destruir a natureza, o marxismo tão pouco a considerou mais do que base de produção destinada ao consumo e também à mercadoria, dentro de uma concepção antropocêntrica, “Em última instância, uma mercadoria leva implícita a destruição da biodiversidade biológica e uma perda de material genético único e insubstituível, pois cada animal ocupa um nicho ecológico” (Taeli, 2018: 233).

A abordagem Pachakuti (fora do pachamamismo do atual regime “socialista” na Bolívia, que sem entender esta tendência de pensamento e deturpando e torcendo e prostituindo chamou de “os direitos da Mãe Terra”) tem a ver mais com a ecologia profunda criada por Arne Naess que em seu projeto de vida declarou que a luta é pelo fim do antropocentrismo.

  1. https://jichha.blogspot.com/2019/02/es-posible-pensar-marx-desde-el.html
Bibliografia:
  • ALI C.D. (2019). ¿Es posible pensar Marx desde el Indianismo-Katarismo? Qullasuyu: Periódico mensual Pukara. Enro 2019. Año 12. No. 149.
  • ANDERSON, K. B. (2012). Marx en torno al nacionalismo, la etnicidad y las sociedades no occidentales. (En: https://viento¬sur.info/spip.php?article6987). Al 01, enero 2019
  • GÜENDEL, Hermann. (2011). Marx sobre América Latina, revisión crítica de una enunciación eurocentrada. Revista Praxis No. 67. Dialnet.
  • HEGEL, G. W.F. (2005). Lecciones sobre la Filosofía de la Historia universal. Madrid. Editorial Tecnos.
  • MARIÁTIEGUI, J.C. (2007). 7 Ensayos de interpretación de la realidad peruana. República Boliviariana de Venezuela: Ed. Fundación Biblioteca Ayacucho
  • MARX, K. (2000). Manifiesto Comunista. Ed. Elaleph
  • MARX, K. ENGELS, F. (1972) Materiales para la historia de América Latina. Córdoba, Argentina: Ed. Cuadernos de Pasado y Presente 30.
  • TAELI, G. F. (2018) Marx: la naturaleza y la mercancía. Chile: Nuevos Nómadas. 229-237. (En: http://nomadas.ucentral. edu.co/nomadas/pdf/noma-das_48/48_14G_marx_la_na¬turaleza_y_la_mercancia.pdf) Al 02 enero 2019
  • Tarcus, Horacio. (2008). ¿Es el marxismo una filosofía de la historia? Marx, la teoría del progreso y la “cuestión rusa”. Andamios, 4(8), 7-32. Obtido em 01 de janeiro de 2019, em http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-00632008000100001

Fonte: Pukara No 150. La Paz, fevereiro de 2019. Visto em https://jichha.blogspot.com/2019/02/indianista-anarquista-mirando-marx.html

Um comentário sobre “Uma indianista anarquista olhando Marx

  • Exelente material. Por mais referências indígenas e camponesas no anarquismo e nos movimentos populares.

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