Opinião Anarquista: Defender 2013 como experiência de luta popular!
Opinião Anarquista | Junho 2023/2 – versão para impressão
Fazendo 10 anos das Jornadas de Luta de 2013 parte das forças da esquerda institucional vem revivendo análises que criminalizam ou deslegitimam as manifestações, criando uma retórica de que foi lá que nasceu um germe da extrema-direita bolsonarista, desconsiderando as diversas experiências de luta como um todo, suas complexidades seus marcos e acúmulos políticos. Sobre as narrativas que deslegitimam 2013, nós anarquistas especifistas nos colocamos uma pergunta central: quem tem medo do poder popular? quem sente pavor de ver o povo se organizando e se revoltando massivamente nas ruas reivindicando um direito básico?
O MPL, Movimento Passe Livre, origina-se a partir de lutas populares, como a Revolta do Buzu em Salvador (2003) e Revolta da Catraca de Florianópolis em 2005. O motivo da rebelião é a indignação diante das péssimas condições de transporte das classes oprimidas. Historicamente empurrado para as periferias das grandes cidades, nosso povo vive muito longe de onde trabalha, enfrentando horas de trânsito e atravessando cidades sufocados em veículos superlotados, com preços abusivos cobrados por esse serviço que emprega trabalhadores mal remunerados e sobrecarregados devido aos cortes de funcionários e às demissões em massa, que geram acúmulo de função, exploração que enche o bolso das mafias privadas de transporte coletivo.
Enquanto o povo brasileiro tira dinheiro do seu orçamento apertado, de seu salário que não acompanha o aumento do custo de vida, para pagar a ônibus, ou se arrisca furando as catracas e pulando os muros das estações, as famílias da Máfia do Transporte compram seus helicópteros, matriculam seus filhos nas escolas mais caras, comem do bom e do melhor – tudo isso às nossas custas.
Desde janeiro daquele ano, o povo se revoltou contra mais um aumento abusivo da tarifa e teve como resposta do Estado a repressão violenta e desproporcional. Manifestantes espancados e presos, gás lacrimogêneo e bombas de “efeito moral” disparadas à queima roupa, tiros de bala de borracha alvejando as pessoas no rosto, deixando muitas cegas e com ferimentos graves. Nossas sedes foram invadidas como a invasão do Ateneu Libertário – A Batalha da Várzea, sede da FAG em Porto Alegre, no dia 20 de junho de 2013, no auge da experiência do Bloco de Lutas contra o Aumento das Passagens.
Foi em uma manifestação de junho de 2013 que Rafael Braga, trabalhador da reciclagem que estava no centro do Rio de Janeiro coletando papéis e outros materiais, foi preso arbitrariamente pela polícia racista, que o acusou de portar materiais para preparação de coquetel molotov, quando na verdade tudo que possuía na ocasião era uma garrafa de pinho sol e nem sequer participava dos atos contra o aumento da tarifa.
Quando recebemos essas cenas da brutalidade policial contra manifestantes em São Paulo e no Rio, no início de junho, foi que as manifestações do Movimento Passe Livre, aliado às frentes populares de luta pelo transporte, se multiplicaram e reuniram centenas de milhares de pessoas nas ruas, com destaque para os dias 13 e 20 de junho. Houve atos conectando a revolta contra a tarifa e a repressão policial em Joinville, Floripa, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Curitiba, São Paulo, Brasília, Porto Velho, Maceió, Salvador e centenas de outras cidades – nas regiões metropolitanas e interioranas. Com milhões de pessoas na rua é provável que 20 de junho tenha sido um dos dias em que mais gente saiu às ruas em um ato na história do país. Por trás de tudo, havia o contraste entre demandas sociais urgentes do povo trabalhador e o dinheiro público utilizado para a realização dos megaeventos esportivos por parte do Partido dos Trabalhadores (PT), então à frente do Executivo. A oposição à realização dos megaeventos também estava relacionada ao direito à cidade, pois as cidades-sede passaram por um intenso processo de gentrificação que incluiu a remoção forçada de milhares de famílias de suas casas.
NÃO HÁ SAÍDA FORA DA LUTA POPULAR!
Após uma tentativa fracassada da mídia em criminalizar e deslegitimar os atos, houve um esforço coordenado e eficiente em disputar o sentido das ruas. Logo, as bandeiras contra a tarifa dos movimentos sociais e organizados disputavam espaço contra pautas genéricas anticorrupção e a hostilidade a qualquer partido ou organização de esquerda. Em algumas cidades, o bloco de esquerda se viu minoritário no final daquela disputa. Ainda assim, houve ganhos concretos da mobilização. Foi possível reduzir o valor do busão em mais de 100 cidades ao mesmo tempo, conquista que teve impacto até nas estatísticas de inflação nacional de 2013.
Do ponto de vista político, também houve marcos importantes. As Jornadas inspiram uma geração de novos militantes a se organizar, incluindo parte das organizações que compõe a CAB atualmente. Dezenas de ocupações por moradia surgiram entre 2013 e 2014, se vinculando posteriormente ao MTST e dando ao movimento a expressão e força que possui até hoje. As lutas contra as remoções dos megaeventos e as ocupações de escolas de 2015 e 2016, marco de combatividade do movimento estudantil, também tiveram influência decisiva das Jornadas.
De 2013 pra cá, foram 10 anos em que continuamos enfrentando as investidas neoliberais; o capital agroexportador que engole nossas florestas e ameaça os povos que vivem nela; período em que presenciamos o avanço da extrema-direita, com quatro anos de um governo genocida e seu estado policial de ajuste. Vimos uma Copa e uma Olimpíada no Brasil projetadas sobre a expulsão forçada de milhares de pessoas pobres. Durante esses 10 anos, também testemunhamos o fortalecimento da ideia de que nossa única saída enquanto povo oprimido está na via eleitoral. Há quem culpe 2013 por essa década, tentando jogar no colo do povo a culpa pelos golpes dados pela elite. Puxar o freio de mão da luta popular e responsabilizá-la por quaisquer resposta da direita, dos patrões ou do setor conservador presente entre o povo, é acreditar que recuando podemos vencer essa guerra, talvez sem incomodar tanto aqueles que nos exploram. Por tudo isso, é necessário afirmar: não conseguiremos construir um mundo novo sem luta de classes, sem enfrentar e destruir tudo o que nos oprime!
Como anarquistas, entendemos o Estado como nosso inimigo, como um instrumento de uma minoria que possui o monopólio da violência por meio das polícias para sustentar a riqueza de uma elite econômica. Não há perspectiva de construção de um Estado popular. Por isso, em 2013, não tivemos receio de apontar as contradições do governo do PT e nem de combater nas ruas suas medidas impopulares. Vale destacar que a direita neoliberal ou grupos fascistas não se fortaleceram através dos atos de 2013: foram, na verdade, resultado de uma tentativa fracassada de lidar com as feridas escravocratas e da guerra de classes através de um pacto de conciliação.
Para garantir governabilidade, vimos anos de um executivo progressista se curvando às demandas dos ricos, latifundiários e especuladores, culminando no golpe parlamentar sofrido em 2016 pela presidenta Dilma. Além disso, o esforço do PT para domesticar os instrumentos de classe e torná-los máquinas de campanha fez com que os sindicatos e movimentos construídos pelo povo não tivessem mais força ou disposição para a luta popular, dando espaço para a direita na disputa ideológica.
Aqueles que hoje querem domesticar as ruas, tentam representar as Jornadas de Junho como um ato do MBL ou uma armação da CIA. Por acaso o MBL, que nem existia em 2013, teria lutado pra abaixar o preço do ônibus, ocupado Assembleias e Câmaras Legislativas? O MBL teria enfrentado e feito correr o caveirão da polícia racista, como aconteceu no Rio de Janeiro? Uma análise honesta sobre 2013 não deveria nos fazer temer as ruas, mas reafirmar nossos caminhos fora da democracia burguesa, na autonomia de nossa gente e em sua auto-organização.
Não há saída para o povo fora da luta popular! É o que nos ensina o legado de 2013. Existe críticas e aprendizados a serem feitos neste balanço de 10 anos, as eles não têm nada a ver com abandonar as ruas e atos autônomos. Em 2013, identificamos que não tínhamos força para enfrentar ao mesmo tempo a violência do Estado, a disputa ideológica da ação coordenada das mídias empresariais e a enrolação dos políticos profissionais. E por quê? Porque não havia organização popular suficiente. Cada coração que bate por um mundo livre precisa ser, também, uma mão e um ombro dentro de um movimento social, de um sindicato ou de outro organismo de luta de nossa classe. Cada ato de rua deve servir também para trazer mais pessoas para nossos movimentos. Nossa vitória não será por acidente. Ela precisa ser construída com estratégia coletiva e trabalho cotidiano, desde hoje, desde baixo e à esquerda.