O pano rasga: Nota das mulheres da CAB sobre o caso Mari Ferrer
O nosso cotidiano social é substancialmente conectado à dominação de gênero, raça e classe. O assédio sexual é fruto desse encontro, seja no espaço público, seja no privado; desde o trabalho – onde a autoridade é reafirmada por meio do assédio sexual – até a nossa casa. O corpo das mulheres é constantemente ligado à satisfação sexual e ao cuidado de necessidades básicas, como se fosse obrigação se submeter ao trabalho de dar prazer e conforto ao homem cis branco. O dever moral do papel sexual de gênero se instaura de tal forma que não somos vistas apenas como quem deve ser um objeto de prazer, mas numa convenção de que somos um objeto de prazer. Por isso, não é nada incomum uma amiga relatar à outra os assédios e abusos sexuais que já sofreu, seja na infância, seja no cotidiano da vida adulta. Nossa ferramenta para seguir sempre foi o silêncio, a constante negação e naturalização.
Nas tentativas de romper com o silêncio por meios judiciais – até mesmo antes de chegar as vias de fato –, somos sistematicamente questionadas ou ignoradas. Como se merecêssemos o lugar que nos foi designado. Quer dizer, a “lei natural” é de que a mulher serve às vontades do homem cis branco, pois, se algum deles quiser submetê-la a ele sexualmente, ela merece esse lugar ou está nele, no caso de mulheres não brancas. Então, quando as vítimas expõem seus casos de abuso, geralmente são postas sob interrogatórios que questionam mais o papel delas durante a violação que ela sofreu do que o papel do violador que a violentou. Esse tipo de situação é o que geralmente faz com que diversas mulheres que já foram violentadas se calem e se rendam ao silêncio, já que reconhecem que seu lugar, comportamento e aparência serão questionados. Conseguir levar adiante a denúncia perpassa pela noção informal de justiça, envolta pela noção de branqueamento da sociedade brasileira, em que apenas os homens negros são jogados aos tribunais; aquela que questiona nossa sanidade e capacidade de entendimento dos fatos; aquela que nos violenta mais uma vez antes de nos colocar frente a um juiz.
Para uma classe dominante – no âmbito econômico, político e social – se manter na posição de poder em que ela está, na correlação de forças da nossa sociedade colonizadora, é necessário que justifique seus atos e pensamentos através de uma imagem construída da lei, do que é ético, justo e sob o direito – conceitos utilizados conforme seus interesses. Então, na justiça estatal, o que prevalece enquanto “justo” está diretamente conectado à minoria que detém o “direito” de dominação, utilizando essa instituição para fundamentar socialmente os deveres que ela denomina aos dominados. Podemos dizer, nesse sentido, que qualquer denúncia que seja um ataque aos de cima, que compõem essa elite política e econômica, será questionada, absolvida e negada. E por que não assumir que esses problemas possam ter a mesma origem, que é a dominação?! Em uma sociedade em que as relações são baseadas na dominação, constroem-se papéis de performance (como se deve agir), noções éticas e de justiça, baseados nas vontades da classe dominante e na repressão da reação contra esse regime. Aqui, cabe dizer que o estupro é uma variedade de violência ligada ao gênero e raça, uma ferramenta política de superioridade. Em situações de guerra, por exemplo, o estupro é utilizado como ferramenta de terrorismo e dominação.
Nesse sentido, é importante entender que o corpo também é um território, passível de ser explorado e colonizado. Assunto que perpassa o debate de propriedade privada, por exemplo, seja pela noção de objeto privado, no caso de mulheres negras, seja pela família, no caso de mulheres brancas. É a devastação de um território para privá-lo, matando tudo aquilo que abala a sua estrutura de superioridade racial e de gênero. Mulheres trans, lésbicas. Vítimas da colonização dos corpos e mortas pelo perigo que representam/representamos.
No Brasil, por meio da divulgação midiática do caso Mari Ferrer, podemos perceber e identificar como essas relações de poder racial, econômico e de gênero se unem, desaguando na justiça estatal. O Estado cumpriu o papel de assegurar os direitos do assediador branco de classe alta e não os da vítima – também branca, de classe privilegiada e que assim pôde recorrer a policiais e juízes – como se houvesse uma justificativa para a violação cometida. A linha argumentativa do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que fez a defesa de André de Camargo Aranha, foi justamente a de culpabilizar a vítima pelo abuso que sofreu, ou seja, de jogá-la no lugar para onde a dominação de fato se direciona. É importante entender a diferença entre “sentir-se injustiçada” e ter a injustiça como cotidiana, naturalizando-a.
A pauta que está levando as mulheres para manifestarem-se nesse fim de semana é justa porque é um ataque a todas nós e queremos enfatizar aqui que a questão do estupro no Brasil não é uma questão que possa ser individualizada ou recortada do debate de dominação racial, de gênero ou de classe. Estes homens são imunes a justiça que conhecemos porque foram eles que a criaram. Quando estivermos nas ruas, estaremos na defesa do direito às mulheres através de um viés anarquista, que não deve se contentar com o recorte neoliberal, constantemente assumido pelo feminismo branco. Devemos nos posicionar criticamente em relação ao papel do Estado nesse processo e questionar os assédios e estupros sofridos cotidianamente pelas mulheres da camada popular, naturalizados e absolvidos pela justiça burguesa.
Uma vida digna para as mulheres se dá junto ao povo oprimido, pela construção coletiva da luta em nosso território. Lutando pela emancipação e subvertendo as estruturas.
Nossa força move o mundo!
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