[FARPA] Cenários de conjuntura alagoana: a crise alagoana em meio à pandemia
A chegada de 2021 não representou qualquer expectativa de renovação na vida da grande maioria de alagoanas e alagoanos, que atravessam a retomada do crescimento da pandemia em meio a inseguranças cada vez mais profundas quanto às condições de vida.
A cesta básica sobe em todas as capitais, de acordo com o Dieese, sufocando as famílias que não conseguem ter acesso aos alimentos mais essenciais. Carne, óleo, leite, feijão. O mínimo vai se tornando inatingível em um estado em que mais de 47% das pessoas vivem em situação de pobreza e convivem com uma média de até R$ 437 mensais. Na mesma pesquisa apresentada pelo IBGE em novembro de 2020, com dados de ainda antes da pandemia, foi registrado que pessoas brancas recebem 37,4% a mais do que as pessoas negras.
Seguindo a pesquisa, a taxa de desemprego em Alagoas é de cerca de 20%, a terceira maior do país. São mais de 890 mil pessoas sem qualquer ocupação, 34% delas há mais de dois anos. A alta de desemprego que atinge todo país reflete também as consequências de três anos de uma reforma trabalhista que desmantelou ainda mais os direitos e condições de direitos de trabalhadores. Estamos ficando sem direitos e sem empregos.
Em toda essa equação, dados no Brasil apontam que as mulheres são as maiores sobrecarregadas e desempregadas durante a pandemia. O relatório Mulheres na Pandemia, da organização feminista Sempreviva, destrincha que 58% das mulheres que ficaram desempregadas são negras, contra 39% brancas e 2,5% indígenas. A sobrecarga se deu em razão do aumento da demanda de cuidados, uma vez que mais de 50% das mulheres passaram também a cuidar de alguém dentro de casa.
O anuário da Segurança Pública apontou que o número de feminicídios aumentou no país durante a pandemia. Foi ainda registrado o aumento da subnotificação dos casos de violência doméstica. Seja pelo trabalho remoto ou por também estarem desempregadas, o confinamento para as mulheres representou também uma sobrecarga de trabalho e um convívio maior com seus agressores. Vem sendo esse o quadro de grande parte das mulheres, não divergindo muito da realidade alagoana, onde o aumento do desemprego atinge ainda mais mulheres, nordestinas, negras e jovens.
Trabalho, renda e precariedade
Se o pão está caro e a liberdade pequena, é porque do outro lado há quem identifica que esta é a única forma de manter o prato cheio do capital nacional e internacional que, em sua financeirização, transforma o alimento em commodities, e regulariza os interesses do comércio para o agronegócio, enquanto fecha o cerco contra agricultores familiares, contra trabalhadoras e trabalhadores rurais sem terra, e contra a população indígena. Os povos indígenas em Alagoas sofrem com a ausência de demarcação de suas terras e com a falta de acesso a condições básicas, assessoria técnica para o plantio e, em meio ao confinamento de uma pandemia, sentem a pressão da fome.
A agroindústria e a agropecuária têm tomado as terras e os recursos no campo, espoliando várias famílias rurais nos municípios de Alagoas. Na zona rural, nos povoados, vemos camponeses sem terras para produzir, sem recursos que permitam uma economia subsidiária, sem estudo para um conhecimento científico e técnico que permita um melhor desenvolvimento, enfim, sem emprego e sem renda fixa para garantir uma vida menos sofrida. Apenas o abandono político do Estado e a presença dos fazendeiros que açoitam a população pobre.
Para os povos quilombolas, que em Alagoas vêm sendo reconhecidos em 180 territórios (IBGE), a violência do governo federal abrange desde a própria legitimação – apenas 70 comunidades são certificadas – até a absoluta ausência de políticas públicas conduzindo-os a uma vida de miséria e falta de acesso ao mínimo, em termos de saneamento, saúde e infraestrutura, que só acentuou a gravidade em meio ao período da pandemia.
É assim que a política de morte do governo federal é mantida nos governos estadual e municipais, em cima do corte de políticas públicas mínimas ou ausência de execução delas.
O cenário de emprego e renda não são bons. As diversas modalidades de contrato e relações de trabalho, a exemplo do intermitente e dos trabalhadores/as de aplicativo, endossam um contexto de pobreza que se manifesta também em profundas desigualdades étnico-raciais e de gênero. A condição histórico-estrutural do trabalho em Alagoas produziu uma realidade de insegurança e precariedade, alimentada pela forte presença de atividades sazonais no campo e ocupações de alta rotatividade no comércio e serviços. A taxa de informalidade que tem oscilado na casa dos 40%, sequer nos dar toda a dimensão do problema.
A deterioração dos serviços públicos, além de prejudicar os que necessitam do serviço, rebaixa as condições de vida de servidores/as efetivos/as e cria uma gama de trabalhadores/as em contrato temporário ou em contratos que servem como moeda de troca eleitoral nos municípios. Além disso, no setor privado, empresas de telemarketing acumulam denúncias de pagamento abaixo do salário mínimo, que soma-se ao assédio moral e vigilância que sufoca trabalhadores/as na capital e no agreste alagoano. Enquanto fazem isso, acumulam receita de R$ 1 bilhão, a exemplo da italiana Almaviva que opera em Maceió, além de todo o subsídio e aporte de infraestrutura por parte do poder público para as suas instalações.
O povo não estaria sofrendo tantas mazelas, causadas pelo abocanhamento de lucros das grandes empresas e do próprio capital financeiro, não fosse um Estado que operacionaliza essa transformação da riqueza – produzida coletivamente – como negociata para acumulação dos segmentos econômicos do qual estes sujeitos no poder estão inseridos. Permanência no controle estatal, apropriação de riqueza e concentração de privilégios são só algumas das motivações para afundar povos inteiros à falta de esperança sobre um amanhã.
No Brasil, nada é tão nítido quanto a maneira que Paulo Guedes destrói, desmonta e rouba os recursos do povo: seja na insistência com o “Teto de Gastos”, o Teto da Morte, que congelou o orçamento da saúde em 20 anos; seja emperrando até onde foi possível o Auxílio Emergencial, até conseguir acabar com ele, relegando o povo a falta de opções para subsistência. A agenda de privatizações prometida para 2021, no que depender de Guedes, cumprirá com maestria e a qualquer custo o que o governo brasileiro firmou desde 1989 junto ao FMI, no Consenso de Washington – um dos grandes marcos do país como oficialmente signatário às políticas neoliberais. “Entregando alucinadamente” – como ele mesmo relatou em entrevista ao veículo Infomoney – Guedes garante mais 11 privatizações, com foco nos Correios e na Eletrobras.
Em Alagoas, entretanto, a onda de privatizações já vem acontecendo, endossada pelo governo estadual. Após a venda da Eletrobras para a Equatorial, foram mais de 700 trabalhadoras e trabalhadores demitidos, e aumento das reclamações em torno do aumento da conta de energia e péssima qualidade de serviço. Recentemente Renan Filho prosseguiu com o leilão da parte mais lucrativa da Casal à canadense BRK Ambiental junto ao fornecimento de licença do saneamento no Estado por 35 anos, em um processo que teve envolvimento direto do Plano de Privatização intermediado pelo BNDES.
A pobreza como estratégia de dependência e poder
Em Alagoas, é literalmente a miséria do povo que produz o oportuno prato cheio para perpetuação da política coronelista que mantém as mesmas famílias no poder, rodiziando municípios, e exportando quadros diretamente para Brasília, onde se tornam verdadeiros articuladores no parlamento, e distribuidores de benesses para aliados locais.
O papel vem sendo preenchido ao longo da história por políticos como Fernando Collor e Renan Calheiros. Mais recentemente o deputado federal Arthur Lira ocupa lugar de destaque, eleito braço direito e tábua de resgate para Jair Bolsonaro dentro do Congresso. Suas alianças na capital federal se ampliam com a bancada evangélica, e com ruralistas dentro do chamado Centrão a qual lidera. Estadualmente, o enraizamento vem se dando a partir da distribuição de recursos oriundos das verbas parlamentares para pavimentação, entrega de máquinas agrícolas e outras benesses que promovem a si e seus aliados. Obviamente Lira não inventou a roda desta dinâmica perversa e sequer é o único. A pobreza do povo e a dependência dos municípios por recursos federais é um projeto político que posiciona o povo alagoano neste lugar onde a única solução para uma vida digna, seja dentro de casa ou em sua comunidade, se encontra também nesta relação de apoio e dependência.
Ainda assim, os anúncios de “desenvolvimento” permanecem nas vozes do governador Renan Filho, filho do senador Renan Calheiros, que já vem sendo ventilado como mais um quadro a serviço da exportação à Brasília em possível candidatura de presidência pelo MDB. Não foi à toa sua declaração de que “o país é um só”, ao ofertar 35 leitos em Alagoas para o povo amazonense em contexto da lotação e falta de oxigênio em suas unidades.
A saúde, por si só, alavanca o caos do uso das vacinas utilizadas como plataformas políticas, o que se soma à habilidade genocida do governo Bolsonaro que já resultou em 200 mil mortes por Covid-19. Enquanto o mundo se preparou para a realização das vacinas, seja da China, Índia ou Rússia, o Basil tornou-se uma brincadeira de queda de braço. Além do mais, negligenciou qualquer estratégia logística aprofundando a insegurança não só sobre a data de chegada da vacina, como o acesso a ela em razão da falta de outros insumos. Muito timidamente, mas ainda cercado de incertezas, a vacinação foi iniciada.
Retornando a Alagoas, enquanto Renan aponta discursos que conflitam com as falas de Bolsonaro nos quesitos mais performáticos, na área econômica e de resposta ao empresariado, foi só mais um que não manteve uma estrutura mínima que propiciasse o isolamento social. No campo manteve legitimados os conflitos e não poupou seu aparato de “segurança pública” a serviço da violência contra o povo preto nas periferias das áreas urbanas, nas situações de despejo no campo e na cidade. Atualmente, de volta com Alfredo Gaspar, empreendem mais uma investida midiática que identifica como “Operação Saturação”, cujas respostas objetivas restringem-se muito mais a causar pânico e violência nas áreas periféricas do que a um suposto combate a crimes organizados.
Por outro lado, foi o próprio Alfredo Gaspar que, quando então procurador-geral do Ministério Público Estadual, teve suas práticas questionadas pelo Conselho Superior do MP por ter privilegiado a BRASKEM em um acordo que prejudicou moradores de pelo menos cinco bairros das áreas atingidas pela mineração da empresa ainda controlada pelo Grupo Odebrecht. O afundamento nos bairros decorrente das consequências geológicas da extração fulminante de SALGEMA retirou de suas casas mais de 25 mil pessoas – número que continua crescendo conforme a identificação das áreas atingidas cresce. Sem suas casas, grande parte do contingente segue precisando efetuar deslocamentos, sob dependência de um aluguel social insuficiente para custear as moradias em outras localidades.
Organizar a resistência como potência e urgência
Não faz muito tempo que enfrentamos mais um período eleitoral. Como os demais, não fez mais do que modificar algumas peças de xadrez, mantendo o jogo e a continuidade desse processo de afundamento dos direitos da população, no campo e na cidade, ainda mais agravados pelos reflexos provocados em razão da aglomeração das campanhas eleitorais.
Enquanto anarquistas especifistas em terra quilombola, reafirmamos a urgência de não permitir que sejam os de cima a definir quais os termos para nossa existência, sejam os daqui ou os de fora. Para nós, o direito à terra e moradia, a organização de nossas comunidades e de nosso trabalho, trata-se não só do lugar de uma urgência para que retomemos o controle sobre a produção e reprodução da nossa própria vida, como também a única forma de mantermos acesa a potência da transformação social construída por nós e para nós.
Ela não vem só, entretanto, mas a partir da organização coletiva dessa mudança no chão da luta cotidiana, seja nos sindicatos e locais de trabalho, nos bairros, na organização de agricultoras e agricultores familiares e camponeses, nas associações e no estreitamento dos vínculos entre campo e cidade, nas ocupações e nas ruas.
Federação Anarquista dos Palmares (FARPA)
Janeiro, 2021