Teoria

Capitalismo, Estado, Luta de Classes e Violência

Coordenação Anarquista Brasileira

Publicado na revista Socialismo Libertário nº 4, set. 2020

Como sustentamos num outro momento, “os anarquistas, clássicos e/ou contemporâneos, defendem propostas distintas no campo do método de análise e da teoria social”, e “isso não os faz mais ou menos anarquistas”. Entretanto, colocamos também que sustentar essa posição não significa “fazer tábula rasa dos métodos e das teorias sociais e afirmar que todas as ferramentas teóricas para a compreensão da realidade sejam similarmente eficazes”. Para nós, “alguns métodos de análise e determinadas teorias sociais são mais adequados que outros para a compreensão da realidade”. O que pretendemos agora, nesse texto, em resumo, é “avançar na construção desse ferramental teórico adequado para o nosso tempo e o nosso lugar”. [CAB, “Distintas abordagens teóricas dos anarquistas”]

Queremos seguir nessa direção, discutindo elementos gerais de um quadro de referência, que permitam aprofundar a explicação de como concebemos esse ferramental teórico-metodológico para analisar a sociedade. Por ora, nosso objetivo é explicar o que compreendemos por capitalismo, Estado, luta de classes e violência, aspectos centrais de nossa sociedade, e como entendemos a relação entre eles, tomando como base as classes sociais e dominação de classe. Queremos, ainda, indicar como a dominação de classe se articula com a dominação nacional (colonialismo/imperialismo), a dominação étnico-racial (racismo) e a dominação de gênero (patriarcado). Reservaremos para um próximo momento o debate sobre a relação dessa questão com as especificidades de nossa formação social brasileira.

Capitalismo: sistema de dominação

O conceito central para o entendimento desses temas é sistema de dominação. Quando falamos em capitalismo, em termos gerais, devemos concebê-lo como sistema de dominação capitalista, sistema capitalista, ou um todo histórico e dinâmico definido por relações de poder, que conta com uma determinada estrutura e envolve partes relacionadas entre si. Isso significa que, em termos analíticos, é necessário tanto estabelecer quais são essas partes e como se dão suas relações, quanto enfatizar que não é possível considerar essas partes independentes ou como algo que tem funcionamento próprio e completamente autônomo. Significa que, historicamente, na prática, essas partes e suas relações funcionam conjuntamente, mas que, em teoria, podemos separá-las para melhor compreendê-las.

Podemos definir sistema de dominação como o conjunto de mecanismos que se relacionam em uma determinada estrutura social. Esse sistema é o resultado do conflito entre forças sociais que interagem mutuamente e resultam em relações de poder; estas últimas formam tais mecanismos e explicam as relações entre eles. Esses mecanismos nada mais são que formas ou tipos de dominação. Num sistema de dominação, os mecanismos classistas de sua estrutura são essenciais. Para serem analisadas de modo adequado, as classes sociais devem ser definidas pelo conceito de dominação, sendo que consideramos a exploração um tipo de dominação, que não é único e nem determina todos os outros. Isso significa que as classes sociais não são um conceito puramente econômico, vinculado à exploração do trabalho, mas que se estabelecem na relação dessa exploração, fator certamente muito importante, com outros: a dominação político-burocrática, a coerção física e a dominação cultural-ideológica. [Errandonea, “Sociologia de la Dominación”]

Entretanto, num sistema de dominação, os mecanismos classistas de sua estrutura social não são os únicos. Essa estrutura também está composta por outros mecanismos, que envolvem outros tipos de dominação. De modo que podemos afirmar que há dominação nas relações de poder entre as classes, mas nem toda dominação é uma dominação de classe. Dominação pode ser, dominação de um Estado sobre outro, de brancos sobre negros, de homens sobre mulheres, de uma pessoa sobre outra etc. Num sistema de dominação, em geral, os mecanismos classistas relacionam-se com outros, não necessariamente classistas; tais mecanismos determinam e reforçam uns aos outros, dando esse caráter estrutural do sistema.

Historicamente, os diferentes sistemas de dominação variaram em termos de seus mecanismos e da formação de suas estruturas sociais. Em diferentes contextos, produziram distintas formas de dominação e articularam essas formas de modo particular. Conformaram diferentes classes sociais, as relacionaram de diversas maneiras, reforçaram mais ou menos outros tipos de dominação e as articularam com a dominação de classe de modos distintos.

No caso do capitalismo, que conceituamos como um sistema histórico de dominação, podemos dizer que ele certamente teve uma grande relevância das relações econômicas, mas não podemos concebê-lo – ao menos quando tratamos da sociedade em geral, dos aspectos sociais da vida – apenas como sistema econômico. Conforme aprofundaremos adiante, o sistema capitalista vem articulando em si, junto a seus relevantes aspectos econômicos, aqueles de ordem política-jurídica-militar e de ordem cultural-ideológica. [FAU/FAG, “Wellington Gallarza e Malvina Tavares”] E mais: aqueles de ordem nacional, de raça-etnia e de gênero, os quais vem sendo imprescindíveis para sua continuidade como sistema. [CAB, “Toda Mulher Negra é um Quilombo!”] O capitalismo tem produzido conjuntos de classes dominantes e classes dominadas que se relacionam entre si de modo mais particular ou geral em termos de luta de classes. Tem, ao mesmo tempo, estabelecido uma certa relação dessa dominação de classe com o colonialismo/imperialismo, o racismo e o patriarcado.

Dominação: tipo histórico de poder

Como estamos falando bastante de dominação, é importante especificar como definimos esse conceito. Como escrevemos num outro momento:

A dominação é um tipo de poder, que caracterizamos como um poder autoritário, contra o qual temos nos mobilizado historicamente. A dominação é uma relação de poder hierárquica que pode se institucionalizar com uns decidindo aquilo que diz respeito a outros e/ou a todos. Ela explica as desigualdades estruturais, envolve relação de mando/obediência entre dominador/dominado, alienação do dominado, entre outros aspectos. É o fundamento básico das relações de classes, ainda que não se possa reduzir dominação à dominação de classe. [CAB, “Nossa Concepção de Poder Popular”]

As sociedades históricas em geral, e o sistema capitalista em particular, possuem sua centralidade nas relações de dominação. Dominação é, portanto, um tipo histórico de poder: “Concebemos o poder como uma relação social estabelecida a partir do enfrentamento entre diversas forças sociais, quando uma ou mais forças se impõem às outras.” O poder existe em todas as sociedades e a dominação é o tipo de poder mais comum nas sociedades históricas, inclusive no sistema capitalista. O poder constitui-se quando uma capacidade de realização transforma-se em força social e essa força se impõe no jogo de forças. A dominação constitui-se quando esse modelo de poder apresenta as características acima descritas. [CAB, “Nossa Concepção de Poder Popular”]

Mas, se por um lado as relações de dominação foram e continuam sendo as mais comuns nas sociedades, por outro lado, ao tomarmos como base as relações sociais forjadas por outras culturas e mesmo diversas experiências revolucionárias levadas a cabo, várias delas com protagonismo dos anarquistas, podemos dizer que outras relações foram e são possíveis. Nosso projeto de um poder autogestionário e federalista, o qual temos chamamos de “poder popular”, é um contraponto a esse modelo de poder dominador.

Dominação de classe: exploração, coerção física, dominação político-burocrática, dominação cultural-ideológica

As relações de dominação se expressam nas várias esferas da sociedade, como mecanismos estruturais, como tipos de dominação. Quando falamos em dominação de classe, podemos falar em quatro tipos de dominação que, em termos sociais, são profundamente influentes na formação das classes e no estabelecimento da luta de classes.

Na esfera econômica, o tipo de dominação mais comum é a exploração: a apropriação dos excedentes do trabalho dos trabalhadores pelos proprietários dos meios de produção; aqui, uma minoria detém os meios de produção e uma maioria está a ela subordinada. Na esfera política-jurídica-militar, os tipos de dominação mais comuns são, de um lado, a coerção física: a imposição de força por meio da violência, e, de outro, a dominação político-burocrática: o monopólio das decisões que afetam a sociedade; aqui, uma minoria detém os meios de coerção e controle e uma maioria está a ela subordinada. Na esfera cultural-ideológica, o tipo de dominação mais comum dominação cultural-ideológica: o monopólio na elaboração e na difusão de ideias, informações, concepções de mundo; aqui, uma minoria detém os meios de produção e difusão do conhecimento e uma maioria está a ela subordinada. [CAB, “Nossa Concepção de Poder Popular”]

Em termos históricos, cada sociedade articula esses tipos de dominação de modo distinto. Não raro, entretanto, proprietários dos meios de produção, dos meios de coerção e controle, dos meios de produção e difusão do conhecimento são os mesmos nas três esferas ou então articulam seus interesses para a continuidade das relações sistêmicas de dominação. Mas um elemento constante é que esses tipos de dominação estão sempre articulados, relacionados; eles dependem uns dos outros, de modo que a economia capitalista não se mantém e não se desenvolve, em termos políticos, sem a força e as políticas de Estado e sem um alicerce cultural e ideológico que garanta sua legitimidade.

Classes e luta de classes

Dessas formas de dominação derivam nossa concepção de classes sociais e de luta de classes. Como falamos, para nós, as classes sociais são definidas a partir do conceito de dominação e envolvem tanto economia quanto política e cultura; proporcionam, deste modo, uma estratificação social que evidencia distintos privilégios. [Malatesta, “Programa Anarquista”; Corrêa, “Epistemologia, Método de Análise e Teoria Social em Malatesta”]

Na esfera econômica, a propriedade dos meios de produção, incluindo a terra, de distribuição e do capital; na esfera política, a propriedade dos meios de administração, de controle e de coerção; na esfera cultural, a propriedade dos meios de produção e difusão do conhecimento. Em linhas gerais, os privilégios econômicos implicam exploração do trabalho, os privilégios políticos implicam coerção física e dominação político-burocrática e os privilégios culturais implicam alienação cultural.

Assim, podemos falar que a luta de classes se manifesta de duas maneiras diferentes. Por um lado, nas relações sociais (conflitos) particulares entre diferentes pessoas em função de sua posição na estrutura social: trabalhadores X patrões, camponeses X latifundiários etc. No entanto, sua manifestação mais importante envolve as relações so-ciais (conflitos) gerais, formadas por dois amplos conjuntos de dominadores e dominados: classes dominantes (ou opressoras, privilegiadas, superiores etc.) e classes dominadas (ou oprimidas, despossuídas, subalternas etc.). [Bakunin, “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo”] Algumas vezes nos referimos a esses conjuntos no singular: “classe dominante”, “classe trabalhadora” etc., mas sempre nesse sentido.

Essa definição de classes sociais extrapola a posição que as pessoas ocupam na estrutura social e envolvem também seus interesses e posições assumidas no conflito de classes. Não se trata da centralidade (ou suposta centralidade) que esses agrupamentos têm num momento histórico determinado e nem da perspectiva (ou suposta perspectiva) de sua evolução futura, mas os interesses de classe e o papel desempenhado por essas classes no processo de luta de classes geral. Assim, concebemos a luta de classes como esse conflito permanente, que tem por fundamento a contradição de posição das pessoas na estrutura social, mas que é potencializada por sua consciência e suas ações.

Como colocamos antes, no sistema de dominação capitalista, a estrutura de classes é parte essencial. Classes que se definem em função do conceito de dominação e a partir das relações sociais nas esferas econômica, política-jurídica-militar e cultural-ideológica. No capitalismo, classes sociais historicamente significativas foram e são, dentre as classes dominantes: os proprietários da terra (nobreza, depois latifundiários), os proprietários dos meios de trabalho como indústrias, tecnologia etc., do capital financeiro e dos meios de comércio (burguesia industrial, financeira, comercial – industriais, banqueiros, grandes comerciantes); os proprietários dos meios de administração, coerção e controle do Estado (burocracia, ou seja, conjunto de políticos, juízes, militares de alta patente etc.); os proprietários dos meios de produção e difusão do conhecimento (clero, lideranças religiosas, gestores do Estado, grandes empresários nas áreas de educação e grande imprensa, mundo acadêmico capitalista etc.). Dentre as classes dominadas temos: trabalhadores assalariados das cidades (proletariado urbano), trabalhadores assalariados dos campos (proletariado rural), rendeiros e pequenos proprietários de terras (campesinato) e aqueles excluídos das relações de trabalho e marcados pela pobreza (marginalizados, desempregados, miseráveis etc.). [Malatesta, “Ideologia Anarquista”; Corrêa, “Teoria Bakuniniana do Estado”]

As classes dominantes, além de explorarem economicamente, frequentemente também têm condições para intervir determinantemente nas decisões de Estado, de produzir e difundir conhecimento. As classes dominadas, além de serem exploradas economicamente, também estão desprovidas de condições para intervir de fato nas decisões de Estado, de produzir e difundir conhecimento. Essas últimas, em geral, não apenas têm seu trabalho indevidamente apropriado por patrões, latifundiários etc., mas são ainda governadas por políticos, julgadas por juízes, reprimidas e mortas por policiais e/ou militares, cujas posições/funções favorecem o sistema capitalista; são consumidoras de ideias, informações e concepções de mundo que interessam às classes dominantes capitalistas.

Portanto, é possível sustentar que, no capitalismo, a luta de classes pode ser interpretada de modo particular (proletariado urbano X burguesia industrial, campesinato X latifundiários etc.) ou de modo geral, como um conflito entre dois grupos de classes contraditórios: classes dominantes (latifundiários, burgueses, burocratas e produtores/difusores de conhecimento capitalistas) e classes dominadas (trabalhadores da cidade e do campo, camponeses e marginalizados).

Capitalismo, Estado e instrumentos de dominação cultural-ideológica

Ao discutir os conceitos de capitalismo e Estado, assim como a relação entre ambos, é necessário especificar se o capitalismo é conceituado em termos gerais e sistêmicos – como fizemos acima, ao tratar de sistema de dominação – ou se o abordamos de modo particular – como elemento exclusivamente econômico de um sistema mais amplo, como economia capitalista, em que a forma mais comum de dominação é a exploração do trabalho. Nesse sentido geral, podemos dizer que o sistema capitalista tem no Estado um de seus elementos estruturais essenciais, ou seja, o Estado é uma das partes do sistema de dominação capitalista. Entretanto, nesse sentido particular, podemos dizer que o capitalismo (economia capitalista) é, assim como o Estado, uma das partes estruturais desse sistema de dominação; assim entendido, o capitalismo está indissociavelmente relacionado ao Estado.

Nesse sentido particular, exclusivamente econômico, o capitalismo – ou, mais precisamente, a economia capitalista –, em função da propriedade privada dos meios de produção, produz em seu seio classes contraditórias: patrões (proprietários, detentores dos meios de produção) e assalariados (trabalhadores que nada possuem, senão sua força de trabalho, a qual vendem no mercado em troca de um salário); estes últimos, por receberem menos do que produzem, são trabalhadores explorados. Parte da produção gerada por sua força de trabalho não lhes é paga, mas apropriada indevidamente pelos patrões, cujo foco principal é a obtenção de lucro. Desigualdade social, pobreza, desemprego são algumas consequências dessas relações sociais. [FARJ, “Anarquismo Social e Organização”]

Contudo, essa relação mais comum entre burguês e proletário em sentido restrito, seja na cidade ou no campo, não é a única no capitalismo. Em geral, outras relações econômicas convivem com ela, variando conforme o contexto. Com alguma frequência, preservam-se relações pré-capitalistas entre latifundiários e camponeses; e, em determinados casos, inclusive, o trabalho escravo. Com alguma frequência, também, os capitalistas financeiros e comerciais adquirem destacado papel entre as classes dominantes, assim como os desempregados e marginalizados entre as classes dominadas.

O Estado é o elemento político-jurídico-militar central do sistema de dominação capitalista; ele pode ser definido como um instrumento político de dominação de classe, que possui natureza dominadora, caráter de classe e função de garantir a dominação de classe. Internamente (dentro do próprio país), o principal objetivo do Estado é a garantia da ordem, ou seja, a manutenção da dominação de classe. Suas formas mais comuns de dominação são a coerção física e a dominação político-burocrática. Violência, prisões, assassinatos e falta de participação política são algumas consequências dessas relações sociais. A dominação nacional, externa (relação internacional entre Estados) também comum, será discutida mais adiante.

Em termos políticos, o Estado, em função da propriedade dos meios de coerção e controle, cria ele mesmo uma classe social, a burocracia, e impõe à sociedade uma cisão entre burocratas (gestores do Estado: políticos, juízes, militares de alta patente etc.) e governados (todos aqueles que vivem num determinado território e que estão submetidos às regras de um Estado nacional). Os burocratas são responsáveis pela elaboração das regras de funcionamento da sociedade (“legislativo”), das soluções/mediações de conflitos (“judiciário”) e das execuções de regras e deliberações (“executivo”); para tanto, a ameaça do uso da vio-lência e a violência em si são meios fundamentais e permanentes. Os governados são todos aqueles que vivem as consequências desse monopólio de classe do poder político. [Bakunin, “Estatismo e Anarquia”]

Por fim, como instrumentos culturais e ideo-lógicos de dominação de classe, também fundamentais no sistema de dominação capitalista, estão as diferentes instituições que, historicamente, vêm contribuindo para a legitimação desse sistema. Religião, educação, mídia/imprensa são instrumentos desse tipo; elaboram e difundem – a depender do contexto, articuladas ou separadas – ideias, informações e concepções de mundo que são indispensáveis para o funcionamento normal do sistema capitalista. [Malatesta, “A Anarquia”]

Seu mecanismo mais comum de dominação é a dominação cultural-ideológica. Desinformação, alienação cultural, posições em contradição com seus próprios interesses são algumas consequências dessas relações sociais. A cisão imposta à sociedade em função da propriedade dos meios produção e difusão do conhecimento é aquela que põe, de um lado, as pessoas em condições de elaborar e disseminar massivamente o conhecimento, e, de outro, todos os outros que não têm condições de produzir conhecimento e que apenas consomem aquilo que é elaborado e disseminado por outros.

Como falamos, quando tratamos de sistema de dominação não podemos conceber esses mecanismos – exploração, coerção física, dominação político-burocrática, dominação cultural-ideológica, todos os quais relativos às respectivas esferas econômica, política-jurídica-militar e cultural-ideológica – como partes autônomas ou independentes. Ou seja, esses três elementos – economia capitalista, Estado e Religião e/ou educação e/ou mídia/imprensa – estão, em geral, articulados numa relação de dependência e influência mútuas, na qual cada parte é imprescindível para a existência da outra e para o funcionamento sistêmico. [Malatesta, “Programa Anarquista” e “Ideologia Anarquista”; Errandonea, “Sociologia de la Dominación”]

De modo bastante sintético, podemos dizer que, distintamente do que afirmam liberais e marxistas, não há economia capitalista sem Estado e não há Estado sem economia capitalista; e que ambos não são possíveis sem uma legitimação cultural-ideológica. Historicamente, são muitos os exemplos nesse sentido. Foi a economia capitalista que fez, em inúmeros casos, os Estados nacionais e os instrumentos culturais-ideológicos funcionarem como meros promotores dos interes-ses capitalistas. Foi o Estado que proporcionou as condições para a acumulação primitiva capitalista, para o estabelecimento da propriedade privada e sua garantia. Foi também o Estado que pautou a produção e a difusão do conhecimento em mui-tas circunstâncias. Foram as religiões, os sistemas educativos (estatais ou privados) e as mídias/imprensas (também estatais ou privadas) que garantiram a legitimidade da economia capitalista e do Estado, sendo considerados imutáveis, aceitáveis ou mesmos justos.

Em cada contexto particular, essas partes sistêmicas interagiram de modo distinto, com suas peculiaridades históricas. Mas sem que, para isso, tenham de prescindir umas das outras.

Legitimidade e violência

Parece agora importante responder: Por que o sistema capitalista continua a funcionar, tendo em vista que a quantidade de pessoas das classes oprimidas é muito maior que a das classes privilegiadas? Tal continuidade é, normalmente, garantida de duas maneiras: pela legitimidade e pela violência (coerção física).

Em geral, para conseguir se manter, uma relação de dominação precisa ser legítima aos olhos dos dominados e da maior parte da sociedade. Isso ocorre quando há, por parte dos dominados, algum nível de vontade de obediência, juntamente com certo nível de “consenso” estabelecido cultural e/ou ideolo-gicamente entre a totalidade das pessoas. Essa legitimidade existe quando as pessoas creem que as coisas “são assim mesmo”, ou ainda, quando elas acreditam que tal sistema é aceitável ou justo. [Malatesta, “A Anarquia”] Para isso, contam a satisfação daquelas necessidades que são percebidas como mínimas e as possibilidades de realização das aspirações.

Todas as partes do sistema de dominação capitalista contribuem com essa legitimação, na medida em que produzem e difundem ideias, informações, concepções de mundo que, como formas de conhecimento, fazem a maioria das pessoas crer nessa imutabilidade, aceitabilidade ou justiça. São responsáveis por essa produção e difusão as empresas capitalistas, o Estado, as religiões hegemônicas, a educação privada ou estatal, a mídia/imprensa alinhada ao sistema. A maioria dos sistemas de dominação de longa duração contou com essa legitimidade, produzida pelas classes dominantes e difundida por meio das culturas e ideologias hegemônicas.

Contudo, vale falar que essa legitimidade não funciona sempre. Quando o consenso é rompido, há outros mecanismos que terminam por ajustar os não convencidos ao modus operandi do sistema. Em primeiro lugar, aqueles que vão desde o medo da demissão e do desemprego, até o receio de descumprir leis, regras, de ser processado, de passar um constrangimento frente a outras pessoas. Em segundo, aqueles que se apoiam na violência, na coerção física. Podemos dizer que é comum que parte considerável dos problemas de ajuste ao sistema seja solucionada apenas com a ameaça de utilização da violência: o medo de ser preso, ferido, morto etc. são, em tais casos, determinantes. Mas quando esses mecanismos não são suficientes, entra em cena utilização real da violência, no sentido de uso intencional da força bruta e consequente ruptura de integridade da vítima. Nesses casos, pessoas ou grupos/coletivos com condutas prejudiciais ao sistema são reprimidos, e seus protagonistas retirados de circulação temporária ou definitivamente. Mesmo que, em termos gerais, a violência não seja uma exclusividade do Estado, podemos dizer que, no capitalismo, ela é exercida principalmente pelo Estado, em função do monopólio que ele possui dos meios de coerção; trata-se do recurso político que, em última instância, garante a dominação sistêmica. [Malatesta, “Anarquismo y Violencia”]

Mas, se por um lado a violência é eficaz no sentido de garantir a ordem e manter a estrutura do sistema de dominação em funcionamento, por outro lado ela é desgastante e tem certos custos para essa mesma estrutura sistêmica. Nenhum sistema consegue se manter exclusiva e permanentemente apoiado na violência. Historicamente, os sistemas de dominação mais duradouros foram aqueles que tiveram grande legitimação e que a violência permaneceu como último recurso, a ser utilizado nos momentos de crise de legitimidade.

Classe, colonialismo/imperialismo, racismo e patriarcado

Como já falamos, a dominação de classe, mesmo que seja essencial no sistema capitalista, não é a única forma de dominação existente e nem aquela que subordina todas as outras. Discutiremos agora três outras formas de dominação – dominação nacional (colonialismo/imperia-lismo), dominação étnico-racial (racismo), do-minação de gênero (patriarcado) – e sua relação com a dominação de classe. Para nós, as classes sociais estão indissociavelmente ligadas às questões nacionais, étnico-raciais e de gênero. [GT de Gênero CAB, “A Importância da Defesa Pessoal para Mulheres”]

Entender o sistema capitalista, suas relações sociais de classe, e cada um desses tipos de dominação, implica um conhecimento da totalidade dessa estrutura. O sistema de dominação capitalista não pode ser devidamente entendido sem que seja relacionado com o colonialismo/imperialismo, com o racismo e o patriarcado, pois esses são, também, elementos determinantes em sua estruturação. [Lucy Parsons, “Freedom, Equality & Solidarity”]

Poderíamos começar dizendo que a dominação nacional é uma dominação entre países, que a dominação étnico-racial é uma dominação entre raças-etnias, que a dominação de gênero é uma dominação entre gêneros. Mas, assim conceituados, esses tipos de dominação estariam incompletos, especialmente pela falta de relação com a dominação de classe. Todos os membros de um país colonialista/imperialista não usufruem da mesma maneira dos privilégios da dominação nacional. Todos os brancos e homens de sociedades racistas e patriarcais não usufruem da mesma maneira dos privilégios da dominação étnico–racial e de gênero. Ao relacionarmos essas três formas de dominação com a dominação de clas-se, podemos não somente explicitar esse vínculo, mas ainda conceituá-las de modo mais preciso.

A dominação nacional define-se, então, como uma relação em que as classes dominantes de um país dominam todas as classes de outro. Ela decorre das relações internacionais entre os Estados, estabelecidas a partir da necessidade permanente de aumento de força para responder ao dilema do “conquistar ou ser conquistado”. Historicamente, na formação do sistema capitalista, o modo mais comum disso acontecer foi o das classes dominantes dos países europeus centrais subordinarem, em processos coloniais e imperialistas, todas as classes de países periféricos do mundo. Em termos de dominação de classe, os efeitos desse processo são diferentes nos países dominadores e naqueles dominados. As classes oprimidas dos países dominantes podem ter alguns benefícios indiretos dessa relação; nos países dominados, certamente as classes opressoras sofrem menos que as classes oprimidas. [Van der Walt, “Revolução Mundial”]

A dominação étnico-racial define-se, então, como uma relação em que uma raça-etnia domina outra. Historicamente, o modo mais comum disso acontecer foi a de brancos submeterem negros, índios e outras raças-etnias, dando forma ao supremacismo branco. De maneira geral, todos os brancos se beneficiam dessa relação, e todos os não brancos (negros, indígenas etc.) sofrem suas consequências. Mas, a depender de sua classe social, isso se dá de maneira distinta. Para negros, indígenas e não brancos em geral, quanto mais baixa a posição na estrutura de classe, maiores são os efeitos da dominação; quanto mais alta a posição na estrutura de classe, menores são os efeitos da dominação. Para brancos, quanto mais baixa a posição na estrutura de classe, menores são os benefícios da dominação; quanto mais alta a posição na estrutura de classe, maiores são os benefícios da dominação. Por isso, negros da classe dominante podem também ser vítimas do racismo, do preconceito e da discriminação racial, mas as consequências disso são menos devastadoras do que aquelas que inci-dem sobre os negros da classe trabalhadora. [Van der Walt, “Racisme et Lutte de Classe”]

A dominação de gênero de-fine-se, então, como uma rela-ção em que um gênero domina outro. Historicamente, o modo mais comum disso acontecer foi a de homens submeterem mulheres forjando o patriarcado, no qual a violência de gênero foi e é prática comum. [GT de Gênero CAB, “A Importância da Defesa Pessoal para Mulheres”; ORL, “Pontes entre o Anarquismo e o Feminismo”] De maneira geral, todos os homens se beneficiam dessa relação, e todas as mulheres sofrem suas consequências. Mas, a depender de sua classe social, isso se dá de maneira distinta. Para as mulheres, quanto mais baixa a posição na estrutura de classe, maiores são os efeitos da dominação; quanto mais alta a posição na estrutura de classe, menores são os efeitos da dominação. Para os homens, quanto mais baixa a posição na estrutura de classe, menores são os benefícios da dominação; quanto mais alta a posição na estrutura de classe, maiores são os benefícios da dominação. Por isso, mulheres da classe dominante podem também ser vítimas do patriarcado, do machismo, mas as consequências disso são menos devastadoras do que aquelas que incidem sobre as mulheres da classe trabalhadora. [Lucy Parsons, “Freedom, Equality & Solidarity”]

Mais recentemente, têm sido cada vez mais comuns, como parte do patriarcado, as dominações de gênero que envolvem identidade de gênero, contrapondo pessoas que têm uma identidade entre seu sexo e seu gênero (cisgêneros) e aquelas que não têm (transexuais/transgêneros), assim como aquelas que envolvem sexualidade, contrapondo pessoas que tem atração afetivo-sexual pelo sexo oposto (heterossexual), pelo mesmo sexo (homossexual) e pelos dois (bissexual). Cisgêneros e heterossexuais são dominantes em tais relações; de qualquer forma, assim como acontece na relação homem-mulher, os efeitos e benefícios dessas relações têm bastante influência da dominação de classe. É muito diferente ser homossexual, bissexual, transexual ou transgênero nas classes dominantes e dominadas. [FAR, “Apontamentos Feministas na Perspectiva do Anarquismo Organizado”; CAB-N/NE, “Mãos Dadas e Punhos Cerrados Contra a Transfobia!”]

Os aspectos econômicos, políticos-jurídicos-militares e culturais-ideológicos do sistema capita-lista têm incidência distinta, a depender do país de origem, da raça-etnia e do gênero das pessoas em questão. Os países periféricos, os negros/indígenas e as mulheres são centrais para a dominação sistêmica e estrutural do capitalismo. São recursos fundamentais para a superexploração capitalista e para as submissões nas decisões políticas e na produção e difusão do conhecimento. As periferias mundiais são preferencialmente vítimas da guerra; em muitos países, os negros são alvo preferencial do genocídio, do aprisionamento e da repressão de Estado.

Conclusões e implicações estratégicas

Para finalizar, podemos dizer, resumida-mente, que o capitalismo pode ser conceituado de duas maneiras distintas; como sistema de dominação capitalista e como economia capitalista. No primeiro caso, ele é o resultado das relações de poder existentes em uma estrutura social determinada, as quais envolvem formas de dominação articuladas, classistas e não classistas. No segundo caso, ele compreende a exploração do trabalho (assalariado, mas não apenas) e explica-se pela propriedade privada dos meios de produção, de distribuição e do capital. O Estado é parte essencial do sistema capitalista e instrumento político de classe; seus gestores, a burocracia, possuem a propriedade dos meios de coerção e controle. Externamente, ele prota-goniza a dominação nacional, e, internamente, a dominação político-burocrática e a coerção física (violência). A luta de classes é um conflito social central no sistema de dominação capitalista. Ela se expressa, de modo particular, entre duas classes antagônicas, ou de modo geral, entre um conjunto de classes opressoras e outro de classes oprimidas. A violência é uma ferramenta central do sistema capitalista; por meio do Estado, ela constitui o último recurso para manter o funcionamento desse sistema.

Derivam desse nosso quadro de referência uma série de implicações finalistas e estratégicas que estão expostas com maior profundidade em outros textos.

Em termos de objetivos finalistas, podemos dizer que nosso projeto caracteriza-se pela imposição de uma relação de poder por parte das classes oprimidas às classes dominantes, substituindo a propriedade privada, o Estado e a alienação cultural pela socialização da propriedade, o autogoverno democrático e uma nova cultura autogestionária. Eis o que compreendemos por uma revolução social que implanta o socialismo libertário. É a substituição de um sistema de dominação por outro, de autogestão e federalismo; a substituição da dominação em todas suas formas pela autogestão e o federalismo aplicados a todas as esferas da sociedade. [CAB, “Objetivos Finalistas”]

Como mostramos, essa transformação sistêmica e estrutural exige não somente o fim da dominação de classe, mas de todas as formas de dominação, dentre as quais estão o colonialismo/imperialismo, o racismo e o patriarcado. Trata–se, portanto, de uma transformação sistêmica e estrutural, em que a dominação é substituída pela autogestão e pelo federalismo; o capitalismo e o Estado são abolidos e as classes sociais, assim como o colonialismo/imperialismo, o racismo e o patriarcado não existem mais.

Em termos estratégicos, podemos dizer que nosso projeto de poder popular, autogestionário e federalista, é classista. Ou seja, prevê que os sujeitos que devem protagonizar essa revolução se encontram no campo das classes dominadas em geral. Não se trata, portanto, de dar exclusividade ao proletariado urbano e industrial, ao campesinato ou aos marginalizados. Devemos também entender que nossos inimigos de classe não são só os patrões, latifundiários, banqueiros etc.; também o são os burocratas do Estado e os proprietários dos meios de produção e difusão do conhecimento.

Ademais, quando entendemos o caráter sistêmico e estrutural do capitalismo, fica fácil de entender que não se transforma completamente esse sistema modificando somente uma dessas partes. Contrariando os marxistas e aquela que foi a maior experiência histórica nessa direção, consideramos que não há possibilidade de socialismo sem abolição do Estado. Uma sociedade que pretende acabar com o capitalismo e que não abole o Estado – como nos casos de “socialismo real” do século XX, em especial a Revolução Russa [CAZP/FARPA, “Revolução Russa”] –, não chega ao socialismo e muito menos à emancipação dos trabalhadores. Ela produz, em função da existência do Estado, uma nova classe dominante, a burocracia, que, preponderando em todas as esferas, continua a se impor aos assalariados, camponeses e marginalizados. Poderíamos dar muitos outros exemplos.

Finalmente, entendemos que o classismo nunca deve ser abandonado quando se trata das lutas contra o colonialismo/imperialismo, o racismo e o patriarcado. Nosso anticolonialismo/anti-imperialismo foi e deve ser sempre classista, de modo que, nas lutas de libertação nacional, as classes dominantes do país subjugado devem ser consideras inimigas e as classes oprimidas do país dominante devem ser consideradas aliadas em potencial. É isso que, entre outras coisas, marca nosso internacionalismo e nos distingue dos nacionalistas. Nosso antirracismo, nosso feminismo, nossa luta contra a homofobia e a transfobia também foram e devem sempre ser classistas, de maneira que vinculemos essas lutas a um projeto classista, sem subordiná-las à luta de classes, de modo a não priorizar a mobilidade individual e grupal/setorial nas estruturas de classe (“mais mulheres na gestão das empresas”, “mais negros como políticos” etc.), mas a transformação social coletiva e classista.

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