As coletividades anarquistas camponesas durante a Guerra Civil Espanhola
Tradução: faguista. O texto original encontra-se aqui.
Coletividade na Espanha
A coletividade, na Espanha, era cada uma das instituições econômico-sociais inspiradas nos princípios anarcossindicalistas. Formaram-se durante a situação revolucionária que acompanhou a guerra civil em diversos pontos da geografia espanhola. Quatro dos casos mais conhecidos foram as empresas coletivizadas na cidade de Barcelona (Catalunha), as coletividades agrárias de Aragão, as da Comunidade Valenciana e as da Região de Múrcia.
Em Barcelona as coletividades exerceram um papel de gestão similar às cooperativas, sem patrões, ao serem controladas por seus próprios trabalhadores. Serviços da cidade, como o transporte urbano, foram geridos pelas coletividades. No campo de Aragão, na Comunidade Valenciana, na região de Múrcia e em outros pontos da geografia espanhola, as coletividades agrárias funcionavam como comunas; o papel empresarial e os poderes locais foram substituídos pela instituição dessas coletividades agrárias nos municípios em que se criavam, chegando em muitos casos a abolir o dinheiro e a propriedade privada (alguns dos princípios da sociedade anarquista socialista). Algumas das coletividades aragonesas mais significativas foram as de Alcañiz, Valderrobres e a de Calanda no Baixo Aragão.
Em meados de fevereiro de 1937 realizou-se em Caspe (Zaragoza, Aragão) um congresso cujo propósito era criar uma federação de coletividades, ao qual compareceram 500 delegados representando 80.000 coletivistas aragoneses. Ao longo da frente de Aragão, o Conselho de Aragão na Espanha, de influência anarquista e presidido por Joaquín Ascaso, havia assumido o controle da zona. Tanto o Conselho de Aragão como estas coletividades não eram bem vistas pelo governo da República, por isso em 4 de agosto o Ministro de Defesa Nacional, Indalecio Prieto, deu ordens ao exército, e a 11a Divisão do comandante Enrique Líster foi enviada a Aragão, dissolvendo o conselho de Aragão em 11 de agosto…
Na Comunidade Valenciana, criou-se por iniciativa libertária o CLUEA, Conselho Levantino Unificado de Exportação de Agrios (frutas cítricas), que comercializava com diversos países da Europa, numerosas localidades também de tipo camponês, e na cidade de Elche, em Alicante, chegando a uma completa socialização de suas indústrias e comércios.
Coletividade e Cooperativa
A Confederação Nacional do Trabalho prefere utilizar o termo coletividade ou socialização em vez de cooperativa, como ficou registrado na ata de seu V Congresso, ocorrido em 1979, por pensar que o primeiro é mais próximo à ideia original de coletivismo:
A terminologia cooperativa de produção e consumo empregada na maioria dos acordos dos sindicatos que as apoiam, fazem, com frequência, nuances de funcionamento e fins que nos dão subsídio para identificá-las com o conteúdo coletivista próprio do movimento anarcossindicalista. Por isso, adotamos como definição para todos os casos o termo COLETIVIDADE DE PRODUÇÃO E CONSUMO. […] Portanto rejeitamos o cooperativismo, cuja dinâmica leva à integração na sociedade capitalista, criando novos empresários. […] As coletividades de produção e consumo que atualmente possam ser criadas não devem ser consideradas como meio direto e absoluto para alcançar a emancipação dos trabalhadores. Podem servir como meio indireto para aliviar nossos problemas aquisitivos e por outro lado levar à prática realizações em que se demonstrem a capacidade de auto-organização dos trabalhadores, eliminando os intermediários, donos de armazéns, especuladores, etc.
As coletividades durante a Revolução Espanhola
Coletividades Agrárias
Tratava-se de um regime de trabalho coletivo, em que se expropriavam as terras dos aristocratas e proprietários e as juntavam com as terras dos coletivistas que possuíam algumas terras. Também se juntavam animais, ferramentas e sobretudo o trabalho, que a partir de então seria feito coletivamente, por turnos ou gerido pelo comitê da coletividade. Realizavam-se assembleias periódicas para controlar o que a coletividade estava fazendo. E para fora, se negociava com outras coletividades e se fomentavam trocas.
Em muitas aldeias e povoados chegou-se inclusive a abolir o dinheiro e substituí-lo por vales assinados ou carimbados pelos comitês. Ainda que algumas coletividades tivessem problemas com as autoridades republicanas (a 11a Divisão de Líster entrou em Aragão para dissolvê-las em agosto de 1937), outras, como as de Castela, Múrcia ou Andaluzia, puderam funcionar com mais ou menos sucesso até 1939, quando foram dissolvidas pelas tropas franquistas.
Contexto social
Distribuição da riqueza global do solo espanhol
Terras de cultivo anual | 15.729.839 hectares |
Pousio | 5.400.000 hectares |
Total terra cultivada | 21.129.839 hectares |
Prados, pastagens e montes | 23.642.514 hectares |
Total de terra produtiva | 44.772.353 hectares |
Superfície total da Espanha | 50.510.210 hectares |
Principais latifúndios e seus proprietários
Ducado de Medinaceli | 79.147 hectares |
Ducado de Peñaranda | 51.016 hectares |
Ducado de Villahermosa | 47.016 hectares |
Ducado de Alba | 34.455 hectares |
Marquesado de la Romana | 29.097 hectares |
Marquesado de Comillas | 23.720 hectares |
Ducado de Fernán Núñez | 17.733 hectares |
Ducado de Arión | 17.667 hectares |
Ducado de Infantado | 17.171 hectares |
Condado de Romanones | 15.132 hectares |
Condado de Torres Arias | 13.645 hectares |
Condado de Sástago | 12.629 hectares |
Marquesado de Mirabel | 12.570 hectares |
Ducado de Lerma | 11.879 hectares |
O coletivismo agrário na Revolução Espanhola
A tônica do latifúndio no campo espanhol, herdeiro do caudilhismo do século XIX, levou a uma grande inquietude entre o campesinato. As desamortizações do século XIX não haviam conseguido modificar substancialmente a estrutura da propriedade do solo e o processo de reforma agrária da República não havia atendido as expectativas de mudança. Desta maneira, após o levante de setores conservadores do exército em 18 de julho de 1936, iniciou-se um processo revolucionário em que os camponeses expropriaram os proprietários de terras e organizaram comunidades autogeridas baseadas na propriedade coletiva dos meios de produção. Este fenômeno foi chamado de coletivização.
As coletividades criavam-se por diferentes meios. Nos lugares onde os sublevados contra a República não haviam triunfado, as prefeituras ou os próprios camponeses iniciavam a coletivização.
Usualmente, eram os militantes da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) ou da FAI (Federação Anarquista Ibérica) quem chamavam as assembleias gerais nos povoados e lutavam pela coletivização. […] Nestas assembleias, as pessoas voluntariamente ofereciam terra, instrumentos e animais que possuíssem. A isso se adicionava a terra que se havia expropriado de grandes proprietários. “As pessoas que não tivessem nada para entregar à coletividade eram admitidas com os mesmos deveres e direitos que os demais”. Rapidamente, quase dois terços da terra nas áreas controladas pelas forças antifascistas haviam sido tomadas e coletivizadas. No total, cerca de cinco a sete milhões de pessoas estavam envolvidas.
Deirdre Hogan, Las colectividades anarquistas campesinas durante la Guerra Civil Española
Nos povoados em que os revolucionários haviam triunfado o avanço das colunas de milicianos da Confederação Nacional do Trabalho propiciava as coletivizações seguindo a tese de que guerra e revolução eram inseparáveis.
Buenaventura Durruti
Organização
Em Aragão se formaram coletividades agrárias que se estruturavam por grupos de trabalho com 5 a 10 membros. A cada grupo de trabalho a coletividade atribuía um pedaço de terra para trabalhar, do qual era responsável. Cada grupo escolhia um delegado que representava suas opiniões nas reuniões da coletividade. Um comitê de gestão era responsável pelo funcionamento cotidiano da coletividade. Este comitê se ocupava da obtenção de materiais, fazia trocas com outras áreas, organizava a distribuição da produção e se encarregava das obras públicas que fossem necessárias. Seus membros eram escolhidos em assembleias gerais, em que participavam todas as pessoas que integravam a coletividade.
Referências
- Julián Casanova, Anarquismo y revolución, p. 119.
- Higinio Noja Ruiz, Labor constructiva (AHN-SGC, F-274).
Bibliografia
- Deirdre Hogan, Las colectividades anarquistas campesinas durante la Guerra Civil Española.
- Benjamín Cano Ruiz y José Viadiu, El colectivismo agrario en la Revolución Española.
- Rocío Navarro Comas, Las colectividades agrarias en los folletos anarquistas de la Guerra civil española.
Links externos
As coletividades anarquistas camponesas durante a Guerra Civil Espanhola
Muita gente, ao escutar sobre anarquismo, considera pensar uma sociedade baseada em princípios anarquistas como irreal, idealista e ingênua, como “a visão de uns quantos sonhadores”. Dada a visão homogênea do mundo, apresentada nos meios de comunicação, parece difícil para as pessoas imaginar uma sociedade na qual instituições universalmente aceitas, tais como o Estado, o sistema judicial, a polícia, exércitos e nações já não existam.
Para se ter uma ideia de como tal sociedade poderia funcionar, é útil estudar a revolução social que ocorreu na Espanha em 1936, quando, em um período de dois anos, o povo tomou o poder em suas próprias mãos e começou a construção de uma sociedade completamente diferente, baseada nos princípios anarquistas.
As ideias anarquistas vinham ganhando terreno na Espanha desde a segunda metade do século XIX. A CNT, sindicato anarcossindicalista, foi formada por volta de 1910 e era muito poderosa em 1936, quando contava com 1,5 milhão de membros. Naquela época, as ideias anarquistas se encontravam fortemente arraigadas na mente dos camponeses. De fato, a coletivização já havia começado em algumas zonas rurais antes da revolução social.
Em 17 de julho ocorreu um Golpe Militar no lado espanhol de Marrocos que ao dia seguinte já havia se estendido à península. Nas cidades e nas aldeias os trabalhadores haviam se organizado para derrotar o levante militar e graças a sua iniciativa e coragem, o levante fascista foi detido em três quartos da Espanha. Este povo, no entanto, não lutava só para vencer a tentativa fascista de conquistar o poder, estava lutando também por uma nova ordem social na Espanha.
Tão logo os fascistas foram derrotados, constituíram-se milícias operárias independentemente do Estado. As fábricas nas cidades foram ocupadas pelos operários e nas zonas ruais, as terras dos fascistas em retirada e de seus simpatizantes foram tomadas. Nas áreas rurais da zona republicana, sob a influência dos militantes da CNT e da Federação Anarquista Ibérica (FAI), foi onde a coletivização chegou mais longe. Usualmente, eram os militantes da CNT ou da FAI quem chamavam as assembleias gerais nas aldeias e lutavam pela coletivização.
Nestas assembleias, as pessoas voluntariamente ofereciam terra, instrumentos e gado que possuíssem. A tudo isso era somada a terra que se houvesse expropriado de grandes proprietários. “As pessoas que não tivessem nada para entregar à coletividade eram admitidas com os mesmos deveres e direitos que os demais”. Rapidamente, quase dois terços da terra nas áreas controladas pelas forças antifascistas haviam sido tomadas e coletivizadas. No total, cerca de cinco ou sete milhões de pessoas estavam envolvidas.
A estrutura organizativa e de poder nas coletividades
A menor unidade na coletividade era o grupo de trabalho, frequentemente entre 5 e 10 membros, mas algumas vezes de mais pessoas. Todos na coletividade estavam obrigados a trabalhar, desde que lhes fosse possível.
A coletividade era a comunidade de trabalho livre dos aldeões… o grupo podia ser de amigos ou vizinhos de uma determinada rua ou de um grupo de pequenos camponeses, inquilinos ou jornaleiros.
A cada grupo era atribuída terra pela coletividade e logo eram responsáveis pelo cultivo. Em cada grupo era escolhido um delegado que, enquanto trabalhava junto a seus companheiros a maior parte do tempo, também representava a opinião de seu grupo nas assembleias da coletividade. Em algumas coletividades existiu uma Comissão Administrativa que se reunia com os delegados de cada grupo de trabalho e traçava o plano de trabalho para o dia seguinte.
A comissão administrativa ou comitê de gestão era responsável pelo funcionamento cotidiano da coletividade. “Cuidavam da obtenção de materiais, da troca com outras áreas, da distribuição da produção e dos trabalhos públicos necessários, tais como a construção de escolas”. Os membros do comitê de gestão eram escolhidos em assembleias gerais de todos os participantes da coletividade. A assembleia geral de coletivistas era soberana quando se tratava de tomar decisões importantes.
Também foram criadas federações de coletividades. Em Aragão, onde existiam umas 450 coletividades que abarcavam meio milhão de pessoas, existiu a federação de maior sucesso. Aqui se estabeleceram federações por distrito e regionais. As coletividades de uma mesma área se uniam para formar federações por distrito, compostas por delegados escolhidos em cada uma das coletividades. As federações por distrito mantinham os armazéns para armazenar a produção agrícola das coletividades. Também eram responsáveis pela comunicação e transporte entre vilas federadas e apoiava o progresso cultural na área.
As federações regionais, tais como a Federação Regional de Coletividades Aragonesas e a Federação Regional de Camponeses, também eram compostas por delegados das coletividades. Estas federações eram criadas para vários propósitos. Estabeleciam equipes técnicas para melhorar a produção agrícola e de gado; para capacitar os mais jovens; para levar as estatísticas de produção; para criar reservas regionais e para oferecer créditos e ajuda, sem interesse, às coletividades.
Tudo isto teve lugar com a iniciativa do campesinato. Embora o governo existisse, não teve nenhum poder nisto. “Estava desligada dos órgãos repressivos do Estado. O poder foi dividido em inúmeros fragmentos e espalhado por milhares de cidades e aldeias entre os comitês revolucionários que haviam tomado o controle da terra e das fábricas, dos meios de transporte e comunicação, da polícia e do exército. A luta militar, econômica e política se desenrolava independentemente e apesar do governo”.
A vida cotidiana
Em várias coletividades, o alimento e outras provisões para o consumo local eram armazenados em igrejas, que constituíam armazéns ideais. Os métodos para distribuição local variavam de uma coletividade para outra. Em algumas, foi introduzido o salário familiar. Em outras, os membros da coletividade decidiam o pagamento de um salário a cada pessoa, fixado pela coletividade. O pagamento se estabelecia em função das necessidades da pessoa e não de horas trabalhadas.
Outras coletividades aboliram a moeda estatal e podiam usar sua própria moeda local ou a substituíram por “fichas” ou “cupons” trocáveis por bens.
Frequentemente, os membros de uma coletividade podiam pegar certas provisões, tais como pão, verduras, frutas e em certos casos, vinho de Muniesa (Teruel, Aragão) e inclusive o tabaco de Beceite (Alcañiz) tanto quanto fosse necessário, sem restrição. As coletividades operavam sobre a base de “a cada um de acordo com suas necessidades, de cada um de acordo com suas capacidades”.
Em todas as coletividades, os artigos escassos eram racionados. “Todos, sendo aptos ao trabalho ou não, recebiam o necessário para viver, na medida em que a coletividade pudesse fazer”. A idade para trabalhar era entre 14 e 60 anos. Os dias em que estivessem doentes eram contados como dias trabalhados. Cuidava-se dos anciãos e quando era necessário, construíam-se casas especiais para eles.
O papel das mulheres nas coletividades
Onde quer que as coletividades optassem por pagar em forma de salário, aparanetemente as mulheres recebiam menos que os homens. Na verdade, embora as mulheres tenham desempenhado um papel extremamente ativo nas cidades durante a revolução, o papel tradicional das mulheres no campo parece não ter mudado significativamente. Esperamos poder tratar com mais detalhes a questão da mulher nas comunidades espanholas em breve.
O tratamento para os “individualistas”
Diferentemente da Rússia Soviética, a coletivização não foi um processo forçado e àqueles que não queriam se unir às coletividades era permitido ficar de fora, com uma condição: podiam manter apenas a quantidade de terra que eles e suas família pudessem trabalhar sem empregar ninguém para que fizesse o trabalho por eles. As pessoas que não queriam se unir às coletividades eram chamados de “individualistas”.
Mantendo o princípio anarquista de que não há liberdade até que todos sejam livres, as pessoas sustentavam que a participação nas coletividades devia ser sempre voluntária. Os coletivistas estavam longe da maioria no campo e, no entanto, faziam esforços especiais para respeitar a opção dos individualistas e não os condenavam. Em muitas áreas os individualistas, convencidos pelo exemplo das coletividades, eventualmente se uniam às coletividades de forma voluntária e seu número diminuía.
Os individualistas muitas vezes se beneficiavam da coletividade. Em Calanda, por exemplo, recebiam energia elétrica grátis e não lhes era cobrado aluguel. Também pagavam preços baixos pelos bens que adquiriam da coletividade.
O triunfo da liberdade
O objetivo da coletividades era “produzir coletivamente e distribuir com justiça para todos o produto do trabalho”. Com a abolição da propriedade privada, uma profunda transformação sobreveio na mentalidade das pessoas. A forma como os coletivistas agiram durante este período mostra que a ambição excessiva que é evidente na sociedade capitalista de hoje não é uma parte inerente da natureza humana.
As comunidades não se interessavam em possuir mais terras apenas para aumentar suas propriedades, mas, pelo contrário, elas queriam apenas aquela terra para que pudessem trabalhar por conta própria. Houve um grande sentimento de solidariedade entre as diferentes comunidades. Por exemplo, 1.000 coletivistas de Levante, que estava bastante desenvolvida, foram a Castela para dar uma mão. Os coletivistas também enviavam regularmente alimentos e suprimentos para a Frente e também para as cidades.
Os coletivistas em Albalate de Cinca enviavam para a ainda não conquistada cidade de Madrid em março de 1937 o seguinte: dez porcos vivos, 500 quilos de bacon, 87 galinhas, 50 coelhos, 2,5 toneladas de batatas, 200 dúzias de ovos, verduras e várias dezenas de cabras. “Não houve nenhum pedido de pagamento ou requisição por parte dos militares”. Os refugiados que chegavam das áreas conquistadas pelo avanço fascista eram cuidados nas coletividades que ainda restavam.
Com a criação das coletividades, as pessoas deixavam de competir umas com as outras. Também se viam livres de seguir ordens patronais, de trabalhar em terra alheia por algumas moedas, mas, ao contrário, tinham controle sobre sua terra e igual peso em qualquer decisão importante tomada a respeito da organização do trabalho e da gestão dos recursos. Assim, livres, a iniciativa e o entusiasmo dos camponeses espanhóis não tinha limite. “A coletivização tem todas as vantagens da livre cooperação: o trabalho coletivo humano. A liberdade e a igualdade são seus fundamentos”.
Empregaram-se novos métodos de cultivo. Estabeleceram-se granjas experimentais. Utilizaram-se recursos para a modernização das granjas e para a obtenção de maquinário novo. As comunidades ganharam muito juntando seus recursos. Assessoria técnica especializada era oferecida pela Federação Regional. Além disso foram dispensados os parasitas intermediários, a burocracia e outros mecanismos de controle necessários à manutenção do sistema capitalista.
A produção aumentou muito nas coletividades. Em alguns casos, as colheitas aumentaram em mais de cinco vezes em relação ao seu nível no período pré-revolucionário. Em Alcoriza, os coletivistas estabeleceram uma fábrica de frios em um antigo convento. “A produção diária chegou a alcançar 500 quilos. Esta produção é enviada para as milícias antifascistas. Também foi construída uma fábrica de sapatos onde se produz couro e calçados, não apenas para os residentes da vila, mas também para as comunidades do entorno”.
Em nenhuma coletividade existia o desemprego. Esta era uma grande mudança na vida da Espanha de antes das coletividades, em que os camponeses podiam ficar desempregados por meio ano.
Os coletivistas não se preocupavam apenas com seu bem-estar material. Estavam profundamente dedicados à educação e durante este período muitas escolas foram estabelecidas, apoiadas nos princípios de Francisco Ferrer, o educador anarquista mundialmente famoso. Como resultado de seus esforços, muitas crianças receberam educação escolar pela primeira vez.
Em Calanda, “a escola é o programa excepcional da vila. Segue a filosofia de Francisco Ferrer. 1233 crianças frequentam à escola. Está construída em um antigo convento. As crianças mais adiantadas são enviadas ao Liceu de Capse. A coletividade cobre os gastos”. A Federação de Juventudes Libertárias, em particular, era muito ativa na agenda cultural, instalando bibliotecas, cinemas e centros comunitários.
A iniciativa dos camponeses pode ser vista nitidamente nos usos originais que deram às antigas igrejas. Viraram cinemas, cafés, açougues, oficinas de carpintaria, hospitais, fábricas de massas e, em alguns casos, quarteis. Talvez um dos exemplos mais típicos do novo papel das igrejas na coletividade é o uso dado à antiga igreja de Alcañiz, “os padres foram embora. A igreja não foi queimada. Serve de armazém para a comunidade. As diferentes seções são marcadas nos pilares: sapatos e sandálias por aqui; sabão e outros materiais de limpeza; carnes e frios; conservas e outras provisões; tecidos e roupas. As batatas eram armazenadas perto do altar principal… escritórios foram instalados. Não se consegue nada com dinheiro, apenas com cupons. As pessoas recebem o que pedem e fica registrado no livro de cupons. O público entra pela porta da frente. As portas laterais são utilizadas para a distribuição de provisões. A igreja é o mercado local”.
A Revolução Espanhola é única na história, ao ser a única oportunidade em que as massas puseram conscientemente as teorias anarquistas em prática. Ainda que as coletividades não puderam ter oportunidade de se desenvolver plenamente e não fossem perfeitas, elas tiveram muito sucesso enquanto duraram. Demonstraram como as pessoas comuns são perfeitamente capazes de organizar uma sociedade justa e eficiente, nas condições certas. Os camponeses e operários da Espanha demonstraram que o anarquismo é possível.
As coletividades anarquistas
Durante a Guerra Civil Espanhola, na zona republicana, especialmente na Catalunha, Levante e Aragão, teve lugar uma importante prática autogestionária; pode-se considerar um dos experimentos sociais mais importantes do século XX.
As coletividades não tiveram sua origem no Estado nem nos partidos políticos nem em qualquer vanguarda, mas foram produto da vontade popular. Tal como disse Abad de Santillán, os órgãos da CNT e da FAI não estabeleceram nenhuma diretriz, a reativação da indústria, dos serviços e das terras foram obra de total espontaneidade em que se estabelecessem novas bases. Em cada lugar de trabalho se formaram comitês administrativos e diretivos formados pelos trabalhadores mais capazes e dignos de confiança. Em poucas semanas do início do conflito, já existia uma economia coletivista vigorosa com uma regulação do trabalho e da produção verdadeiramente operária e camponesa. Os meios de produção estavam nas mãos dos trabalhadores.
Pode-se dizer que, ainda que a espontaneidade fosse um fator importante, o sucesso das coletividades estava em longas tradições comunitárias do povo espanhol. Embora apoiada por vezes pela UGT e outros grupos e personalidades republicanas, foi a CNT e o movimento libertário que garantiram a criação das novas formas de organização econômica e social. Gaston Leval, autor de uma das obras mais importantes sobre o tema, “Colectividades libertarias en España”, afirmou que as conquistas do movimento anarquista não teriam tido lugar se não estivessem em sintonia com a psicologia profunda de, pelo menos grande parte dos operários e dos camponeses. Outro autor, Daniel Guerin em “El anarquismo”, disse que a coletivização não teve imposição ou derramamento de sangue; os camponeses e pequenos proprietários que não quiseramaderir ao trabalho foram respeitados, embora mais tarde muitos deles aderissem à coletivização ao perceberem as vantagens dela. Até os direitos das pessoas que não se integraram e puderam utilizar alguns dos serviços das comunidades foram respeitados.
Lembrando as propostas do anarquismo clássico, é preciso dizer que a estrutura das coletividades não foi homogênea; algumas estavam próximas ao comunismo libertário [costuma-se colocar o exemplo da comunidade de Naval], mas a maioria respondeu mais ao coletivismo. Se em algumas a moeda oficial foi abolida e foram criados títulos equivalentes para troca [mais nas cidades de Aragão], em outros continuou a ser usada [Levante, Catalunha e Castela]. De qualquer forma, apesar das diferenças, o que prevalecia nas coletividades eram os valores libertários: solidariedade, apoio mútuo e igualdade. Praticava-se a fraternidade em benefício da coletividade e cada pessoa devia contribuir ao trabalho de acordo com suas forças.
As coletividades mais ricas ajudavam as mais pobres por meio de um Fundo de Compensação, por região ou comarca, que se encarregava de registrar a renda de cada trabalho coletivizado. Estes Fundos eram administrados por pessoas nomeadas pela assembleia geral de delegados das coletividades. Diversos trabalhos, como os citados, arrecadam importantes cifras destes Fundos, cujos recursos eram obtidos com o produto da venda dos excedentes das coletividades mais prósperas. Todos os recursos, utensílios, maquinarias e instrumentos técnicos estavam a serviço da diversas coletividades de cada região; não existia isolamento algum, mas uma importante rede solidária que também unia eficazmente a cidade e o campo. O trabalho coletivo e autogerido, como é lógico, não foi completo; grande parte da economia ficou de fora do trabalho coletivizado, embora deva-se dizer que nesses casos havia algum controle dos trabalhadores (em bancos e empresas estrangeiras, por exemplo).
Falando em coletivização agrária, a mesma teve seu centro em Aragão e Levante, em menor escala na Catalunha. Em Caspe, nos dias 14 e 15 de fevereiro se constituiu a Federação de Coletividades de Aragão. Pode-se falar em 40% de população rural que formavam parte das coletividades. As mais numerosas e sólidas, no quesito solidez de seu sistema, foram as da região valenciana. Em Castela formaram-se 300 coletividades. Pode-se falar de um grande sucesso na autogestão agrária se nos atermos aos números: as colheitas tiveram um aumento de 30 a 50%. O regime coletivista agrário era mais integral e intenso que no caso das coletivizações urbanas e industriais, certamente pela intervenção do sindicato nos últimos dois casos; no caso agrário, houve maior independência e havia espaço para todos que quisessem se integrar.
No caso das coletivizações industriais e de serviços, seu foco principal era na Catalunha, embora também houvesse em outras áreas do país. As fábricas de mais de 100 operários foram socializadas e as de mais de 50 também poderiam fazê-lo, se três quartos da força de trabalho assim o solicitassem. Na Catalunha o trabalho coletivizado incluiu, além da agricultura, os setores mais importantes da indústria e serviços; é preciso destacar a notável indústria voltada para guerra, cuja produção foi pelo menos dez vezes maior que no resto da Espanha republicana.
Infelizmente, as coletividades despertaram desde o início o receio de um grande setor do lado republicano, desde os partidos burgueses ao socialista. A maior hostilidade foi dos comunistas, que dirigiam seus reforços para desacreditá-las e tentar anulá-las. Uribe, o ministro da agricultura, boicotou a partir do governo a atividade coletivizada; assim, o decreto que as legalizou, a fim de tirar o controle dos sindicatos, teve origem nesta pessoa.
Em março de 1937, grupos bem escolhidos de policiais e guardas de assalto iniciaram uma marcha ao norte de Múrcia e Alicante para tomar Cullera (Valência) e Alfara (Tarragona) e, a partir dessa posição estratégica, iniciar uma repressão contra as coletividades. Segundo Gaston Leval, tudo indica que a operação foi montada pelo socialista Indalecio Prieto, ministro da Guerra, que concordava com os comunistas no que se tratava de combater os anarquistas.
Em 10 de agosto de 1937, foi abolido o Conselho de Aragão, que era um dos redutos independentes do movimento anarquista. Pouco depois, o general Líster, à frente da 11a divisão, arrasaria 30% das coletividades de Aragão, prendendo os membros mais destacados das coletividades. No caso da autogestão industrial na Catalunha, o governo central negou sistematicamente qualquer tipo de ajuda. O governo central, de Negrín e dos comunistas, publicou em 22 de agosto de 1937 um decreto que anulava aquele outro de outubro de 1936, em favor das coletivizações. A guerra acabaria por ser perdida, mas antes disso, o movimento autogestionário, encorajado em grande parte pelos anarquistas, perdeu muitas outras batalhas contra os que deveriam ser seus aliados contra o fascismo.
A experiência anarquista: Coletivizações na Espanha (1936-1937)
Resumo:
Um contexto de guerra e destruição nos mostra, no mais íntimo de sua existência, um trabalho magnífico de construção. O anarquismo espanhol desenvolveu, no meio de uma Guerra Civil (1936-1939), um admirável processo de Revolução: a coletivização agrária e industrial.
Se houve um momento e um lugar na História em que o anarquismo se manifestou além de toda utopia, de todo sonho, foi nos primeiros meses da Guerra Civil na Espanha (julho de 1936 – agosto de 1937). Como ensaio fracionado e condicionado pelas circunstâncias, no entanto as coletividades industriais e agrárias da Espanha republicana foram a concretização efetiva de um pensamento ideal, muitas vezes subestimado pelos políticos contemporâneos.
A maior parte do trabalho coletivizado espanhol foi precedida por projetos anteriores à guerra, difundidas pelos anarcossindicalistas e anarquistas da Confederação Nacional do Trabalho (CNT) e a Federação Anarquista Ibérica (FAI). Uma premissa fundamental que possibilitou o trabalho anarquista durante o doloroso fratricídio espanhol foi o slogan “A Revolução e a Guerra são inseparáveis”, que antecedeu a “missão” do governo republicano de “vencer a guerra primeiro”. Os atritos neste e em outros aspectos entre os anarquistas e o resto dos republicanos marcaram um pouco mais no fracasso governamental pelo controle da situação espanhola. Mas também se iniciou com estas coletivizações a decadência definitiva da CNT-FAI, após sua aceitação do princípio de “vencer a guerra primeiro” e a entrada ao governo de importantes lideranças, que outrora manifestaram-se intransigentes com qualquer Estado. A militante da FAI Federica Montseny que veio a ocupar o Ministério da Saúde e Assistência Social na segunda etapa do governo de Francisco Largo Caballero, confessaria esse erro, lamentando a decisão de seu movimento (“gostaria que não tivéssemos intervindo e não tivéssemos nos encontrado, histórica e ideologicamente, desonrados”[1]), mas reconhecendo que não havia outra opção nas circunstâncias em que a guerra se desenrolava.
De qualquer forma, as coletividades anarquistas foram obra mais dos trabalhadores comuns que das próprias lideranças (estes, como bem indica o substantivo, encarregaram-se apenas de guiar e liderar a euforia revolucionária popular que se concentrou espontaneamente em quebrar as barreiras da desigualdade social e da exploração burguesa). E foi o contexto de guerra que permitiu o surgimento das coletividades, assim como foi posteriormente este mesmo contexto que, ao pressionar a produção de alimentos, limitaria suas possibilidades econômicas. Porém, a queda final das coletividades anarquistas não se deu por eventuais falhas no sistema federativo comunal, mas pela intervenção governamental e, sobretudo, à guerra que enfrentou, dentro do mesmo lado republicano, os anarquistas e o POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), de um lado, com os comunistas e o governo do outro. (Como sabemos, o POUM era anti-estalinista, o que o colocava contra o Partido Comunista Espanhol e seus semelhantes regionais.)
A coletivização anarquista ocorreu em várias regiões da Espanha, com diferentes organizações e resultados diversos. Em Aragão, Levante e Castela encontramos o maior número de coletividades agrárias (cerca de 450, 350 e 300, respectivamente); na Catalunha a coletivização foi bem mais urbana.
Sem dúvida, os casos mais notáveis de coletivização são Aragão, no que se refere ao campo, e Catalunha, essencialmente urbana. Tentaremos resumir o trabalho dos camponeses e operários anarquistas concentrando-nos em uma coletividade de Aragão e na coletivização de indústrias de Barcelona (Catalunha).
COLETIVIZAÇÃO EM ARAGÃO: “A TERRA AOS CAMPONESES”
Em Aragão, durante o movimento de levante, as três capitais [Zaragoza, Teruel e Huesca] foram dominadas pelos nacionais, mas não a maioria das vilas e cidades, que estavam sob influência anarcossindicalista. As coletividades, que começaram a se formar a partir do início da resistência e graças aos esforços defensivos militares das forças do membro da CNT Buenaventura Durruti, passaram a agrupar cerca de 430.000 camponeses. No geral, cada coletividade era demarcada nos limites das próprias vilas, o que permitia manter as relações tradicionais de vizinhança. Por sua vez, estabeleceu-se em outubro de 1936 a criação de um órgão de controle regional, o Conselho de Defesa de Aragão, situado em Fraga e presidido pelo membro da CNT Joaquín Ascaso, em cuja apresentação foi sublinhado seu caráter econômico, social, político e militar, baseado na “vontade, espírito e aspirações do povo aragonês” (sua missão era estabelecer um “estatuto modelo” para todas as coletividades da região [2]”. Este Conselho seria legitimado pelo governo central em dezembro, enquanto sua sede mudaria para Caspe, mas se associariam líderes socialistas, comunistas e republicanos, com os quais o governo e os comunistas iniciariam sua intervenção anti-coletivista em Aragão até acabare com o Conselho e com as coletividades em agosto de 1937.
Desde o princípio, a coletivização em Aragão foi bem vista por uns e mal vista por outros. Em algumas vilas [como Calanda e Alcañiz] a aceitação do comunismo libertário foi total; mas em muitas outras, a população estava dividida em “coletivistas” (sempre a maioria) e “individualistas”, e não faltavam aqueles que, depois de um tempo na comunidade, desertaram e reclamaram suas propriedades individuais. Há quem afirme que os individualistas eram forçados a aceitar a coletivização e que, além de serem privados de seus bens e terras, costumavam ser acusados pelo Conselho de Defesa, de “fascistas” e depois executados pelas forças armadas policiais da CNT. Mas essas acusações faziam parte, primeiramente, da ação de propaganda do Partido Comunista Espanhol e do governo, que tinha o objetivo político de aniquilar o único conselho regional autônomo da República, o Conselho de Aragão.
Sabemos com certeza que, numa mesma vila, conviveram “coletivistas” e “individualistas” sem maiores dificuldades, e que quando um camponês da comunidade desejasse retornar à produção privada, poderia fazê-lo sem medo de “acusações” e “torturas”, que o jornal comunista “Red Front” falava.
Por outro lado, é verdade que as expropriações eufóricas de grandes propriedades em que o proprietário legal se recusou a ceder “de boa vontade” às demandas populares e ao movimento revolucionário coletivista, culminaram em ações violentas e acusações de “fascismo” ou “nacionalismo” que talvez fossem infundadas; mas o comum era o respeito ao individualista, desde que este não empregasse trabalhadores assalariados em suas terras. Devido às dificuldades que enfrentava um proprietário trabalhar a terra por si só, muitos homens que defendiam a propriedade privada acabaram ingressando nas coletividades.
A descrição básica de uma coletividade agrária anarquista do tipo que existiu em Aragão seria a seguinte: a terra é dividida em setores que são trabalhados por grupos. Cada trabalhador é escolhido para o posto que melhor se adequa a suas capacidades. Os estoques e ferramentas para produção passam a ser, como a terra, patrimônio de todos os homens. Os grupos são organizados por delegados competentes, que são, por sua vez, trabalhadores da mesma natureza que o resto e que não gozam de benefícios extras (e que são escolhidos por assembleias gerais que também se ocupam de certas decisões de interesse coletivo). O mesmo ocorre com as fábricas e lojas, em que os antigos proprietários que aceitam coletivizar tornam-se guias e dirigentes, mas perdendo o superlucro privado e alcançando o nível dos trabalhadores rurais.
O comércio entre vilas, províncias e regiões estava presente na organização coletivista; porém a política monetária em Aragão dificultava a troca: o dinheiro foi, na maior parte, substituído por cupons, recebidos pelas famílias (e que, em alguns casos, acabam sendo confeccionados em unidades de peseta, como um salário normal, porém uniforme: “25 pesetas por semana para um produtor sozinho, 35 para um casal com apenas um trabalhador, 4 pesetas a mais por filho dependente”[3]); ainda que estas cifras variassem de vila em vila) e que eram trocados por produtos nas lojas da coletividade, enfrentando o problema da troca fora das áreas coletivizadas (isto é, portanto, tratado por um delegado de troca, que inevitavelmente usa dinheiro espanhol).
As igrejas foram transformadas em armazéns, oficinas e escolas (existem muitos casos de violência desmedida contra padres e templos). O racionamento igualitário não deixa de fora professores e médicos, que, como todos, recebem o abastecimento combinado. Em alguns casos, é permitida a manutenção de fazendas privadas para domesticação de animais. Definitivamente, ninguém dentro da coletividade fica sem alimento. Os serviços como eletricidade, transporte e assistência médica fazem parte, também, da coletivização e nem os individualistas pagavam por eles. Por sua vez, o Conselho não arrecadava nem pagava impostos ao governo central.
A produção agrícola parece ter aumentado com a coletivização na maioria das vilas aragonesas; uma publicação do Ministério da Agricultura, divulgada em meados de 1937, demonstra que a produção total de trigo em Aragão aumentou em 270.001 toneladas desde o início das coletivizações (sem dúvida, foi de grande importância para essa conquista anarquista, a inovação em termos de racionalização dos processos produtivos e em melhoras técnicas e de importação de maquinário). As coletividades que tinham lucro dividiam com as de menos sorte.
Definitivamente, como afirmou o talvez otimista demais Agustín Souchy, “a coletividade era uma grande família que cuida de todos”.[4] E, como o historiador inglês Hugh Thomas estimou criticamente, estas coletividades “não mereceram nem o desprezo dos comunistas nem a brutalidades dos nacionalistas” [5]; porém foi assim. Um interesse governamental de controle total, uma concepção ambígua do comunismo que proclamava a “revolução burguesa” sobre a coletivização e o golpe final do nacionalismo espanhol foram os algozes de uma sociedade ainda incipiente, em vias de melhoria que, talvez, se tivesse perdurado, teria significado um diferente modo de vida para toda a Espanha, ou talvez, apenas o fracasso reconhecido de uma utopia lapidada.
AUTOGESTÃO INDUSTRIAL EM BARCELONA: UMA CIDADE PROLETÁRIA
Barcelona, o melhor exemplo de coletivização urbana, foi apenas parte, ainda que importantíssima, de um amplo processo de tomada de empresas que afetou 70% das empresas de toda a Catalunha. Devido ao enorme peso que tinha o anarquismo na região, o levante nacionalista de julho de 1936 foi reprimido, sobretudo, pelas fervorosas forças anarquistas. Bem sucedida a defesa de Barcelona, em 21 de julho foi fundado o Comitê de Milícias Antifascistas, um órgão composto por representantes dos partidos antinacionalistas de Barcelona, que tinha a função de liderar as incipientes milícias que lutariam contra os nacionais e canalizariam e organizariam a Revolução que levaria à coletivização (à autogestão) industrial. A CNT e a FAI eram os movimentos melhor representados no comitê, também incluíam homens da UGT (União Geral dos Trabalhadores), a Esquerda Republicana, o PSUC (Partido Socialista Unificado da Catalunha), Ação Catalã, União de Arrendatários e o POUM. Este Comitê se transformaria automaticamente no “governo efetivo” de Barcelona e da Catalunha, atuando em aliança com a Generalitat presidida por Luís Companys, mas impondo-se a esta e aos mandatos regionais do governo central. Em outras palavras, a CNT-FAI tinha o controle da Catalunha e por meio do Comitê de Milícias Antifascistas se encarregava de levar a cabo a Revolução na indústria e na vida social catalãs. Finalmente, após tantos anos de reclamações, os operários não respondiam a um patrão burguês; agora era o comitê operário que controlava a produção e distribuição.
Diego Abad de Santillán, [6] membro da FAI e do Comitê revolucionário, explica: “publicamos um comunicado à população dando as primeiras indicações da conduta a seguir. Criamos um serviço de patrulhas para cuidar da nova ordem revolucionária; constituímos um comitê especial de abastecimento para que atendesse, dentro do possível, às necessidades mais urgentes da situação criada”. [7]
Em 2 de agosto de 1936, o governo central aprovou a apreensão de terras, fábricas, casas e hotéis que haviam sido executados pelos anarquistas. Mas este furor antiburguês já havia se transformado em uma violenta campanha de crime e destruição: muitos dos grandes proprietários foram fuzilados sem razão, inúmeros bens foram roubados pelo mero interesse e ambição individual, quase todas as igrejas de Barcelona foram incendiadas e muitos padres foram selvagemente assassinados… Tal foi o vandalismo de uns quantos operários e camponeses desaforados que a CNT-FAI se dedicou a reprovar estes crimes, acusando-os de “violência ilegal”, e considerando seus executores “elementos amorais que roubam e assassinam profissionalmente”. [8] Certamente, muitos destes vândalos eram criminosos saídos recentemente da prisão, que haviam ingressado a uma cor política, ainda que não tivessem uma ideologia. No entanto, também há casos de comunistas passando-se por anarquistas que cometiam torturas brutais e assassinatos, para culpá-los dos crimes.
Números apontam que havia na cidade de Barcelona 350.000 anarquistas. Sob o controle executivo do Comitê de Milícias Antifascistas, grande quantidade de indústrias e serviços públicos passaram a ser dirigidos pela CNT, cujos delegados costumavam reunir-se nas grandes residências confiscadas. Por meio do organismo de patrulhas de controle, a ordem coletivista foi imposta na cidade (as “patrulhas de controle” parecem ter sido um núcleo de terrorismo anarquista). A coletivização se desenvolveu, primeiramente, nos serviços públicos (transporte, água, eletricidade, gás, telefonia, assistência médica) e nos comércios. Também em cinemas, teatros, bares, hotéis. A distribuição de alimentos foi garantida de forma coletiva. As indústrias (têxtil, madeireira, metalúrgica, naval, pesqueira) passaram a ser controladas pelo próprio proletariado através dos comitês locais de operários, cujos membros eram escolhidos por assembleias gerais e seguiam, geralmente, as instruções de um engenheiro especializado; mas logo, estes comitês se transformaram em novos “donos” das empresas. Diego Abad de Santillán faz sua autocrítica: “no lugar do antigo proletariado, colocamos meia dúzia de novos patrões que consideram a fábrica ou os meios de transporte por eles controlados como sua propriedade pessoal, com o inconveniente de que nem sempre sabem se organizar tão bem como os antigos donos”. [9] As indústrias se baseavam em uma política federativa, pela qual os comitês de empresa costumavam juntar delegados que discutiam os assuntos de interesse geral.
Os salários nas empresas seguiam sendo individuais (mais altos que antes, sendo uniformes ou hierárquicos, segundo o caso), e as fábricas deviam se autofinanciar para continuar sua existência (quando ficou escasso o efetivo para o financiamento, os governos regional e central não concordaram em ajudar o comitê anarquista, sendo esta uma das principais causas da subsequente integração dos anarquistas ao governo, não havendo outra saída). Logo, as indústrias de guerra apareceram, controladas em grande parte pela Generalitat da Catalunha, que assim começava a intervir na Barcelona proletária. Finalmente, após a entrada de elementos anarquistas na Generalitat da Catalunha em 27 de setembro e a consequente dissolução do Comitê de Milícias Antifascistas em 1o de outubro, o governo catalão decretou a legitimidade das coletivizações levadas a cabo pela CNT-FAI em 24 de outubro. Assim, o governo garantia a si próprio o controle da situação catalã e a CNT começava seu declive. Hugh Thomas descreve as novas disposições acordadas entre a Generalitat da Catalunha e os anarquistas:
“Enquanto as grandes empresas (ou sejam que empregavam mais de cem trabalhadores) e aquelas cujos proprietários eram “fascistas” seriam coletivizadas sem indenização, as plantas que empregavam de 50 até 100 trabalhadores (que em Barcelona de fato eram a maioria) apenas seriam coletivizadas a pedido de três quartos de seus trabalhadores. As empresas com número inferior a cinquenta trabalhadores só poderiam ser coletivizadas a pedido de seu dono, exceto as destinadas à produção de materiais relacionados à guerra. A Generalitat teria um representante no conselho de administração de cada fábrica e, nas grandes empresas coletivizadas, designaria o presidente do conselho. A gestão de toda empresa coletivizada estaria a cargo de um conselho eleito pelos trabalhadores, com um mandato de dois anos. E as que estivessem dedicadas a um mesmo setor de produção seriam coordenadas por um dos 14 conselhos industriais, que poderia intervir, se fosse necessário, nas empresas privadas, a fim de “harmonizar a produção”. [10]
Encontramos três tipos de indústrias “revolucionárias” de Barcelona: as empresas cujos proprietários permaneciam à frente delas, assessorando com seus conhecimentos, mas sendo um comitê operário o que exercia o controle efetivo; as empresas cujos proprietários, rejeitando a coletivização, eram diretamente expulsos e o comitê operário assumia; e as empresas “socializadas”, isto é, reagrupadas por ramo produtivo e organizadas em conjunto por um comitê operário. A economia catalã estava agora integralmente coletivizada, porém a produção industrial sofreu igualmente uma considerável queda, fruto da escassez de demanda e de matéria-prima à qual foi submetida pelo conflito bélico e a desconexão com a Espanha dominada por nacionais.
Concluindo com o período revolucionário, talvez muito questionável em suas conquistas, porém focado como nenhum outro na equiparação social e no fim da exploração burguesa, no início de 1937, o PSUC e o governo catalão atacaram duramente os comitês anarquistas. Não demorou muito para que uma nova guerra civil estourasse em maio: anarquistas e poumistas que defendiam a coletivização industrial e reivindicavam o controle operário frente a comunistas e republicanos que impulsionavam a indústria bélica como meta primordial e garantiam a devolução das propriedades aos pequenos burgueses. Barcelona foi banhada de sangue: 500 mortos e 1000 feridos. A intervenção do governo central para “levar a ordem” a Barcelona resultou na “normalização” da situação. Os anarquistas haviam visto sua influência na política e na indústria de Barcelona ser reduzida e os comunistas haviam chegado ao topo do controle republicano. Catalunha havia perdido sua autonomia e por trás da demissão de Francisco Largo Caballero e nomeação de Juan Negrín como chefe do governo central em 17 de maio, a FAI denunciaria a “vitória do bloco burguês-comunista”; posteriormente, os comunistas seriam “os maiores e os melhores”. [11] A repressão das coletividades se agravaria e os expurgos ao estilo soviético tirariam a vida de muitos anarquistas, poumistas e até republicanos. A CNT havia renunciado a toda participação governamental, mas não havia mais espaço para a luta revolucionária. A coletivização anarquista catalã havia chegado ao fim.
Notas:
- [1] Cit. en THOMAS, 1979,La Guerra Civil Española, vol. iii, pp. 8-9.
- [2] THOMAS, 1979,La Guerra Civil Española, vol. iii, pp. 144-145.
- [3] BROUÉ y TEMIMÉ, 1962,La revolución y la guerra de España, vol. i, p. 181.
- [4] SOUCHY, 1977,Entre los campesinos de Aragón; cit. en BROUÉ y TEMIMÉ, 1962, La revolución y la guerra de España, vol. i, p. 183.
- [5] THOMAS, 1979,La Guerra Civil Española, vol. iii, p. 158.
- [6] “Nome de guerra sob o qual se ocultava, diziam, um militante argentino” (BROUÉ y TEMIMÉ, 1962, La revolución y la guerra de España, vol. i, p. 57).
- [7] Cit. en Crónica de la Guerra Española, 1966, vol. ii, pp. 79-80.
- [8] THOMAS, 1979, La Guerra Civil Española, vol. ii, p.112.
- [9] Cit. en THOMAS, 1979, La Guerra Civil Española, vol. iii, pp. 97-98.
- [10]THOMAS, 1979, La Guerra Civil Española, vol. ii, pp. 344-345.
- [11]Crónica de la Guerra Española, 1966, vol. iv, p.113.
BIBLIOGRAFIA
- BROUÉ, P.; TEMIMÉ, E.: La revolución y la guerra de España. Fondo de Cultura Económica, México, 1962.
- Crónica de la Guerra Española. Editorial Codex, Buenos Aires, 1966. LEVAL, G.: Colectividades libertarias en España. Editorial Proyección, Buenos Aires, 1974.
- MINTZ, F.: La autogestión en la España revolucionaria. Editorial La Piqueta, Madrid, 1977.
- ROSSINERI, P.: “La obra colectivizadora de la Revolución Española”, Libertad, número 20, Lanús (pcia. de Buenos Aires), julio-agosto 2001.
- SOUCHY, A.: Entre los campesinos de Aragón. Tusquets Editores, Barcelona, 1977.
- THOMAS, H.: La Guerra Civil Española. Ediciones Urbion-Hyspamérica Ediciones, Madrid, 1979.Augusto Gayubas Fuente: http://sagunto.cnt.es/wp-content/uploads/2010/12/LA-EXPERIENCIA-ANARQUISTA-COLECTIVIZACIONES-EN-ESPA%C3%91A-1936-1937.pdf