Análise de conjuntura latino-americana
América Latina, terra indômita e rebelde, herdeira de séculos de lutas e resistências, onde a magia invade o realismo, lugar onde passamos por uma situação crítica em termos ecológicos, humanitários e sociais. Hoje presenciamos um momento crucial, em que as ameaças sobre nossos corpos e territórios são cada vez mais concretas e por isso a indecisão e as meias medidas devem ser combatidas com posições e propostas. É nosso dever histórico, como anarquistas, gerar espaços de debate e crítica onde possamos entender os dias de luta que se aproximam da gente. Além disso, é necessário apresentar novas categorias de análise para poder atingir de maneira muito mais certeira aqueles que hoje nos submetem.
Durante as últimas décadas, nossos territórios serviram como espaço para as disputas geopolíticas dos imperialismos: China, Estados Unidos, Rússia, Turquia, entre outros, estabeleceram seus interesses sobre os espaços que habitamos. Devido a isso, é necessário romper com a velha análise baseada na guerra fria, em que os interesses dos EUA se instalavam no continente sem nenhum contrapeso. Hoje existem muitos atores nessa disputa geopolítica. Não podemos cair na miopia e dirigir todas as nossas críticas somente aos EUA, que obviamente nessa disputa geopolítica tenta garantir esta área como seu “quintal”, como sempre quiseram que fosse. Porém, mesmo que eles tenham altos níveis de responsabilidade pela miséria em vastos territórios, eles não são os únicos que tentam aplicar uma política imperial.
Nos encontramos diante de um forte avanço da direita e da extrema direita por todos os lados da América Latina. É um fenômeno de escala mundial, já que diversos partidos com essas orientações estão crescendo eleitoralmente na Europa há três décadas: em países do ex bloco do leste, a extrema direita renasceu com inusitada força e em todo o resto do continente europeu diversas expressões direitistas ganham espaço. Nos EUA, Donald Trump é uma amostra desse fenômeno, com a particularidade de que isso tem efeitos, em sua política imperial, para a área latino-americana e o mundo.
No governo Obama, os EUA apoiaram e organizaram o Golpe de Estado em Honduras, em 2009, iniciando aos poucos essa guinada na direção de um maior controle sobre o que eles chamam de seu “quintal”. Esse golpe teve continuidade no golpe no Paraguai em 2012 e no “golpe brando” no Brasil em 2016. Esse ambiente facilitou a vitória eleitoral de Macri na Argentina em 2015 e de Duque na Colômbia em 2017. O único país onde o “progressismo” avançou foi o México, e isso é muito discutível.
A direita organizou seu “retorno” à frente dos governos. Em todos os países elaboraram fortes campanhas contra os “progressismos”, com foco na anticorrupção – na qual estão envolvidos todos os setores políticos, como ficou evidente no Brasil com a Lava Jato – mas além disso se organizaram no nível latino-americano, sempre contando com o apoio imperial.
Os governos de Macri e Bolsonaro somaram apoio ao Grupo de Lima, esse conjunto de governos reacionários que vociferam “democracia” mundo afora mas aplicam políticas antipopulares e repressivas portas adentro. E particularmente no caso de Bolsonaro, que fala diretamente contra a democracia burguesa, instalando abertamente a ideia de governos ditatoriais.
Esse grupo de países é o que serviu de cobertura latino-americana para os intentos golpistas da direita venezuelana apoiada pelos EUA. Eles lidam abertamente com a possibilidade de uma invasão estadunidense sem rodeios, como nos velhos tempos, recorrendo aos mecanismos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR).
Essa guinada continental para a direita não é algo menor. O sistema capitalista, depois de uma feroz aplicação do neoliberalismo, permitiu diante de embates populares algumas “mudanças”, algumas melhoras, certo “afrouxamento” para aperfeiçoar a dominação e a espoliação constante das e dos debaixo. No período chamado “progressista” houve certas políticas sociais de contenção da pobreza, com medidas diferentes em cada país. Havia como denominador comum permitir certa melhora na vida dos setores mais pobres da sociedade, só que administrando a pobreza: não geraram políticas de trabalho real, deixaram as pessoas pobres no lugar do assistencialismo, ou no máximo como mão de obra terceirizada e precária, com o próprio Estado terceirizando tarefas, enriquecendo empresas ou ONGs e gerando uma classe trabalhadora muito mais precária e sem direitos, amputada de suas instituições e de seus processos de luta.
O extrativismo, tanto dos governos “progressistas” de diversos tipos quanto dos liberais, o extrativismo como regime e dinâmica neocolonial imperante em toda a América Latina, só aprofundou o intercâmbio desigual entre territórios e a divisão internacional do trabalho como expressões históricas da luta de classes, intensificando a exploração de grandes volumes de natureza (commodities) para exportação. A reacomodação geopolítica elaborou novas estratégias para aumentar a circulação de mercadorias para os centros industriais, abrindo estradas em lugares antes nunca pensados, como a série de projetos da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), novos projetos de tratados de livre comércio como a Parceria Transpacífica (TPP-11, que inclui México, Peru e Chile como países latino-americanos), disputando os últimos bens naturais comunitários do planeta. Suas consequências trouxeram questões inerentes a essa dinâmica de exploração da natureza, abrindo importantes processos de desterritorialização através de migrações locais e globais, a perda da biodiversidade, o aumento da violência contra os corpos feminizados e racializados (mulheres e outras sexualidades – não binárias e trans), incluindo assassinatos de aluguel e, finalmente, os casos de corrupção que vimos no Caso Odebrecht, que envolve uma rede entre diferentes países.
Cabe mencionar que a hegemonia dos “progressismos” na década de 2000 intensificou o roubo e a espoliação de nossos territórios, já que seus programas com “ênfase social” se baseavam na extração de bens naturais e na venda para os países industrializados. Nesse sentido, os governos “progressistas” redistribuíram migalhas de uma época de bonança, de crescimento do preço internacional dos commodities.
Geraram algumas melhoras salariais e políticas sociais, porém não se tocou no fundamental do sistema. Essas políticas tinham como denominador comum elevar as condições de vida dos setores mais pobres da sociedade, funcionando simultaneamente como elemento de contenção social enquanto se construíram aparatos estatais repletos de uma casta política acomodada e parasitária, sem questionar o arrendamento da terra e o extrativismo como pilares econômicos do mal chamado “progresso”.
Ao mesmo tempo, as classes dominantes latino-americanas multiplicaram seus lucros e o abismo entre ricos e pobres aumentou. Só que os ricos não queriam perder o controle administrativo do Estado. É o Estado deles: parte de seu poder de classe está enraizado ali e se condensa em suas instituições. Eles não estavam dispostos a permitir que uns “recém-chegados” tirassem o controle do Estado deles por muito tempo. Alguns anos eles até podiam aguentar, enquanto arrumavam a casa depois do saque dos anos 90. Mas já estavam perdendo a paciência.
Isso significa que os governos “progressistas” são a saída necessária e que são a antítese da direita? NÃO. Em primeiro lugar, além de permitir um enriquecimento histórico das burguesias locais e multinacionais, os governos “progressistas” redistribuíram poucos recursos em um momento de crescimento do preço internacional das matérias primas. Quando terminou o “boom” voltaram as dificuldades econômicas e a crise. Só que eles não usaram esse “período de bonança” para investir em geração de trabalho em nível industrial, nem se elaborou nenhuma Reforma Agrária, nem a transformação radical dos serviços para a população etc. Os governos “progressistas” permitiram um desembarque de projetos de extração de bens naturais em grande escala no continente: grandes projetos de mineração, de exploração de petróleo, de plantação de soja e florestas para extrativismo, hidroelétricas… tudo em benefício do capital internacional, especialmente chinês nos últimos tempos. Tudo isso como parte do plano da IIRSA, plano de espoliação elaborado nos EUA. As linhas gerais do sistema não se modificaram, simplesmente se adequaram a uma nova etapa que, então, contando com certo consenso popular, tornava mais fácil implementar a fundo a política de espoliação.
A redistribuição da riqueza foi bastante limitada. Como dissemos, não se tocou no fundamental do sistema: a propriedade privada, nem uma maior redistribuição da riqueza nem as relações de poder. Mesmo assim, a burguesia e os setores mais conservadores não estavam mais dispostos a tolerar Lula, Cristina e Néstor Kirchner ou quem quer que não venha da “alta estirpe”. Um nítido ódio de classe percorre o continente e destila seu veneno sobre os povos.
Mas também nesse período se produziram dois processos que têm as suas peculiaridades nesse contexto: o venezuelano e o boliviano. Na Venezuela, impulsionadas em seu momento por Chávez, se criaram diversas “comunas” que, segundo dizem algumas notícias de jornal, têm hoje em dia um número considerável de povo envolvido e certo desenvolvimento em atividades econômicas, culturais e sociais, sem vinculação alguma com o Estado. Aconteceu ali uma ruptura comparando com o período anterior, em que até militares, burocratas e bolirricos (“bolivarianos ricos”) queriam controlar esse processo e encher os bolsos com o dinheiro que tinha sido investido nessa experiência.
Na Bolívia, há um “Estado plurinacional” dividido, porém, com influência do movimento indígena e camponês, aquele mesmo que protagonizou em 2000 e 2003 as insurreições da “guerra do gás” e a “guerra da água”, botando abaixo governos e colocando freios no neoliberalismo. Essa mobilização dá um caráter diferente aos processos históricos que os povos vivem. Temos que lembrar que, no período anterior, o continente foi sacudido por amplas mobilizações populares que derrubaram mais de um governo.
Mereceria um capítulo especial a situação da Colômbia em que, depois de assinados os “acordos de paz”, foram assassinados mais de 570 militantes sociais. Um setor das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) voltou à luta armada, o que demonstra que não existem garantias nem possibilidade de pacificação no país. Os paramilitares, grupos de narcotraficantes e o Exército continuam articulados aumentando a violência contra as e os debaixo. A Colômbia vive em guerra constante: no entanto, a mídia mostra seu governo como “democrático”, embora seja o país latino-americano que mais recebe apoio militar dos EUA e que é vital para seus interesses, até pela possibilidade de acirramento no conflito na fronteira com a Venezuela.
Nos últimos anos o movimento popular colombiano tem protagonizado importantes lutas, especialmente as organizações camponesas e indígenas, nas quais os processos de ocupação e recuperação de terras tem sido mais do que relevantes junto com as paralisações agrárias.
Hoje a direita ataca com tudo diretamente contra a vida. Prova disso são os incêndios na Amazônia, em que governos como o de Bolsonaro dão “carta branca” para destruir a natureza e promover o genocídio indígena em benefício do agronegócio. É uma expressão de um protofascismo agressivo ao extremo, que não poupa esforços para implementar o sistema capitalista. É o neoliberalismo imposto com total agressividade e aplicando a máxima do império britânico: “cagando pra todas as consequências”.
Um forte ajuste
A burguesia latino-americana precisa retomar a direção dos governos em todo o continente. Precisa disso para impor um ajuste maior, um ajuste duro como o que Macri impôs desde 2015. Mas temos que considerar que essa direita já contava com fortes bases de apoio: no Peru ela não perdeu o governo em nenhum momento, incluindo todos os escândalos de corrupção possíveis, na Colômbia a ultradireita controla o governo com Iván Duque (lá quem governa é o uribismo) e no Chile a já dissolvida “Conciliação” governou em uma lógica pinochetista e neoliberal. Plataforma de lançamento nada desprezível.
Muitas dessas guinadas vieram do próprio “progressismo” ou de seus aliados. Lenin Moreno no Equador era o sucessor de Rafael Correa e deu uma guinada importante em nível político tanto interno quanto na região. Michel Temer deu um “golpe brando” parlamentar sendo o vice-presidente do governo de Dilma Rousseff.
No Uruguai, diversas referências da Frente Ampla se descolam agora da Venezuela e qualificam o governo daquele país de “ditadura”, em sintonia com o Grupo de Lima e com a OEA. Alguns deles, como José Mujica, que até ontem recebia mãos cheias de dinheiro da Venezuela, hoje se mostra como ele é: um oportunista que muda de posição conforme sopra o vento. Agora a Venezuela não envia mais dinheiro por causa do bloqueio econômico e da crise que o país está vivendo, gerada e aprofundada entre outros mecanismos pela OEA, cujo secretário geral, Luis Almagro, foi colocado ali com grande ajuda do próprio Mujica. Se pode dizer que entre os “progressismos” se encontram personagens de toda laia, dignos de uma crônica das maiores infâmias da humanidade.
No Uruguai vai ter eleição em outubro-novembro, assim como na Argentina. A disputa é o grau de ajuste e de garrote: se a Frente Ampla conseguir seu quarto governo vai haver um ajuste e uma guinada à direita de menor grau do que se ganhar a oposição, porém a discussão é o grau do ajuste. E isso vai ser acompanhado de repressão, o que já se está vendo nas manifestações contra a instalação da terceira fábrica de papel do país, em que a polícia sai defendendo os interesses do capital multinacional em um governo “progressista”. E a direita simplesmente viria com o libreto neoliberal duro e puro.
As alianças feitas em muitos casos por ditos “partidos progressistas” são próprias de um filme de terror: o PT se aliou até com a direita mais rançosa e reacionária para conseguir votos no parlamento… comprando votos com dinheiro também, como se demonstrou nas tramas no Mensalão e da Lava Jato.
Mas é aqui que a direita coloca para funcionar à toda os mecanismos do sistema que, em outros momentos, não recebiam essa relevância: o sistema judicial foi utilizado como um dispositivo de poder sinalizador, por si, de corruptos e vários juízes são os novos “cavaleiros” da austeridade e da justiça. E neste exato momento se está demonstrando que a trama de corrupção é maior do que podemos imaginar e que o jogo da direita não mede esforços para tirar quem ela quiser do meio do caminho.
A direita quer o controle político total e retomar as negociações que permitem a condução do Estado: licitações, subornos, compras e negócios, vários dos quais ela nunca esteve ausente, mas a sua voracidade não tem limites. Há uma espécie de “genética” que lhe indica que, por mais que os governos “progressistas” governem para a direita, protejam seus negócios e seus interesses de classe, que contenham as pessoas pobres e reforcem o aparato repressivo, esses “progressistas” não vêm da estirpe dela, não são burgueses de linhagem pura. Para a burguesia, no fundo eles não são confiáveis, mesmo que tenham feito muito bem a tarefa. Tem aí um instinto de classe que essa burguesia industrial-rural-financeira-comercial latino-americana expressa, um evidente ódio de classe que ela lançou às ruas com força inusitada. Ela não quer perder nem uma pontinha de poder. Não está disposta sequer a tolerar medidas paliativas, para não falar de reformas a céu aberto como ocorreu em décadas passadas com os populismos ou os governos desenvolvimentistas ou liberal-reformistas. Essa burguesia é liberal de linhagem pura: em seu sangue circula o ódio às e aos debaixo e uma sede constante de converter o mundo todo em um negócio.
E para que esse negócio funcione é necessário mais e mais terror de Estado. Os ataques vêm de todos os lados, com reformas trabalhistas e de previdência, cortes de orçamento na educação, vista grossa para queimadas, desmatamento e assassinatos de indígenas e pobres. Por outro lado, a esquerda eleitoral segue com seu discurso institucionalista e desmobilizador das bases. No Brasil, as centrais sindicais chamam paralisações de um dia de “greve geral” e não parecem conseguir se dissociar do chamado “Lula livre”. No entanto, nossos esforços seguem sendo fomentar a organização pela base e apoiar lutas com ação direta, como as ocupações de indígenas na Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), contra as demissões em massa nesse órgão de saúde pública, e as greves e ocupações estudantis em universidades, como o exemplo da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) contra a intervenção federal que colocou ali um reitor bolsonarista em vez do reitor eleito pela comunidade acadêmica.
Enquanto os palácios estão formulando leis e projetos de crises, mais liberação econômica, menos direitos para as pessoas e mais lucros para os exploradores, a repressão nas ruas das cidades ataca o povo em revolta e trata de manter as pessoas em silêncio na base da bala.
No campo e florestas está a raiz de uma América Latina que não desfrutou da bonança da “esquerda” no governo. Não apenas as queimadas e o avanço ecocida dos latifundiários fazem vítimas, mas também o genocídio sistemático das populações rurais e nativas, cujos corpos continuam sendo acumulados como resultado direto do avanço da ultradireita no continente.
Argentina: garantir a governabilidade deles ou defender o nosso salário
Os números alcançados nas últimas eleições não evidenciaram nada além do que se está vivendo na rua, nos bairros, nos locais de trabalho. Inclusive nessa instância legitimadora do sistema – como é a democracia representativa – se expressou o desespero das massas populares diante do desmantelamento do país. Podemos começar argumentando que o cálculo errado – tanto das consultorias quanto da classe política – do resultado eleitoral tem relação com o pouco nível de conhecimento desses setores sobre o que se vive abaixo, sobre o rechaço dos setores populares em relação às assustadoras políticas de fome, desemprego e exclusão de Macri e do Fundo Monetário Internacional (FMI). O panorama social, econômico e político que nós, oprimidos e oprimidas, estamos vivendo é cada vez mais complexo e urgente. Em um contexto de recessão, no meio de uma espiral inflacionária e um endividamento sem precedentes, o Peso argentino se desvalorizou 25% imediatamente após as eleições. Isso se transferiu logo para o preço da cesta básica e os combustíveis, em um deliberado lapso de tempo outorgado pelo governo nacional, antes de lançar dez medidas como incentivo em uma tentativa de enganar novamente as classes populares. O resultado: uma estrepitosa redução salarial. Porém, não é nossa intenção falar demais sobre os números para descrever a proporção do dano causado na última jogada especulativa dos setores financeiros e o governo.
Mas nós sabemos que esse período de ajuste que dura já quase uma década, aprofundado pelo macrismo em níveis descomunais, vai ir além do próprio “fim do ciclo” da coalisão Cambiemos. Entre os candidatos, no fundo, se discutem modalidades de ajuste. É por isso que é coerente a proposta de Alberto Fernández de levar o dólar a 60 pesos. Tampouco devemos desconhecer que nos encontramos já em um contexto de duro avanço neoliberal em toda a região, em um continente onde o imperialismo estadunidense tenta retomar o controle hegemônico.
Nesse cenário dramático, devemos analisar que nitidamente se explicitam duas saídas institucionais concretas no imediato. Uma é a que propõem os dirigentes da Frente de Todos, que consiste concretamente em não fazer nada, esperar sentados até dezembro, garantir o fluxo de votos e resguardar a governabilidade (mesmo que isso implique bancar as medidas antipopulares de Macri). Como temos dito, a crise social provocada pelo avanço neoliberal foi diretamente proporcional à crise de falta de participação política da classe oprimida durante um longo período. Devemos lembrar que estamos vindo de décadas de restrição vinda de cima contra a participação popular, através de mecanismos de cooptação, clientelismo e burocratização, quando não de deslegitimação e repressão dos protestos sociais. Esse “paradigma da não participação” pôde ser evidenciado lá no início de 2016 quando, em pleno conflito contra demissões no setor público e no frigorífico Cresta Roja, a cúpula kirchnerista ficava convidando para tomar mate nas praças (o chamado “resistindo com perseverança”). Definitivamente, esse exacerbado pedido a “não bater panelas” – tentando inclusive frear medidas de força nos sindicatos – não esconde nada além da preocupação com a porcentagem eleitoral, em detrimento de impedir maiores níveis de pobreza e desemprego para o povo.
A outra saída a esse golpe contra o bolso das e dos debaixo tem a ver com o que se propõe nos setores combativos do movimento operário e as organizações populares, como a possibilidade de uma resistência organizada na rua. Logo que ocorreu a desvalorização da moeda, pudemos ver a resposta de alguns desses setores, como a manifestação da Associação dos Trabalhadores do Estado (ATE-Capital) e a paralisação da Associação Gremial de Trabalhadores Metroviários e Ferroviários (Metrodelegados) da Cidade Autônoma de Buenos Aires, assim como os cortes de Empregados do Comércio em Rosário. O plano de luta estendido dos trabalhadores estatais em Chubut sem dúvidas é um exemplo de resistência organizada contra as foiçadas do governo. Os movimentos sociais, por causa da fome nos bairros, também organizaram refeições populares em todo o país, em um contexto de um operativo policial de grande envergadura.
Do ponto de vista do anarquismo organizado estamos conscientes que não existe um clima generalizado de efervescência popular e muito menos de rebeldia profunda. Tem luta, descontentamento e altas expressões de rechaço à situação social, porém sabemos bem que estamos longe de um “fora todos” e que os sindicatos e movimentos sociais carecem de um programa de classe representativo. No entanto, é evidente que o humor social não tem os mesmos tempos que o calendário eleitoral. É óbvio que a classe política em seu conjunto tem mais medo da ideia de uma explosão social do que da ideia de que haja mais 10% de pobres. Inclusive, diante da iminente vitória de Alberto Fernández, a dirigência kirchnerista prefere uma vitória com pouca margem e descrença social do que um transbordamento popular com a pressão nas ruas. Neste momento devemos ter cautela. Sabendo que existem setores populares que depositaram esperança no voto e em propostas eleitorais “progressistas” – e que anseiam como nós por uma sociedade sem exploração – é necessário conversar com esses setores e chamar para a resistência imediata através da mobilização popular. Transbordar e transcender a imposição de “soluções vindas de cima” é uma questão vital para devolver a confiança na própria força e na organização das e dos debaixo, para que se expresse com vigor essa resistência que dá mostras de existir. A resposta popular aos roubos do governo e do capital financeiro não pode se fazer esperar. Diante da alternativa de garantir a governabilidade deles ou defender nosso salário, sempre vamos optar pela segunda, buscando com que estejam presentes os métodos que fortalecem as e os debaixo.
Chile: o “modelo” neoliberal funciona…. para os de cima
Na região chilena o sistema de dominação administrado pelo bloco dominante recrudesceu e aprofundou sua política neoliberal. Nesses dois anos de governo Piñera se desmantelou o pouco ou nada de direitos sociais que a classe dominada possuía e, por sua vez, houve um recrudescimento da repressão contra os setores em luta.
No mundo do trabalho assalariado, os instrumentos de flexibilização trabalhista se fortaleceram. Expressão disso é o Estatuto Trabalhista Juvenil e a Iniciativa de Lei que buscou aumentar a precarização do trabalho com o falso discurso de redução de horas de exploração, anulando a possibilidade de negociação coletiva com a patronal e flexibilizando ainda mais as condições do trabalho. Por outro lado, a reforma tributária garante o resguardo das taxas de lucro para o empresariado local e as transnacionais, em um contexto de crise e desaceleração da economia, prejudicando consideravelmente as classes dominadas.
Nos territórios, a Lei de Integração Social consolidou o monopólio de acesso ao solo para o mundo imobiliário, erradicando as comunidades da produção e gestão da cidade e seus territórios, impossibilitando a realização concreta de projetos autogestionados e participativos. O extrativismo e a mercantilização da terra e da água, hoje, mantêm nossos territórios em uma grave situação ecológica, com uma crise hídrica cada dia mais complexa, expandindo as zonas de sacrifício e a alteração dos ecossistemas, como os casos da contaminação da água potável em Osorno, onde se visibiliza a mercantilização das fontes hídricas através das empresas sanitárias, a situação de Puchuncaví-Quintero que não foi resolvida, a morte da vida camponesa, da fauna e da flora em zonas devastadas pela seca, e as falsas saídas que apresenta o bloco dominante através da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 25) e os tratados econômicos como o TPP-11 e a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), que vêm para reforçar o ataque aos corpos e territórios.
Atualmente presenciamos um recrudescimento do aparato repressivo e a criminalização dos protestos sociais. A lei Aula Segura, a Agenda Curta Antiterrorista, a Lei Migrante são mostras nítidas de que o aparato estatal atualiza e aprofunda sua ferramenta de controle e disciplinamento, golpeando fortemente a classe oprimida: ambulantes, feirantes agrícolas, comunidades Mapuche em resistência e estudantes secundaristas. Somado a isso, o assassinato de lutadoras e lutadores sociais tais como Macarena Valdés, Camilo Catrillana, Alejandro Castro e os feminicídios cada dia mais frequentes em espaços públicos, a homo-lesbo-transfobia e o racismo nos evidenciam o Estado de Exceção permanente em que estamos habitamos.
Se abre um novo período de luta e resistência
Ninguém nunca deu nada de presente para os povos. Todos os tempos são de luta, todos os períodos têm as suas complexidades. Agora que a direita e a ultradireita estão retomando o controle dos governos e os “progressismos” dão guinadas nessa direção em maior ou menor grau (caso da rearticulação peronista na Argentina ou uma eventual vitória da Frente Ampla com minoria parlamentar no Uruguai, por exemplo), se abre uma nova etapa de lutas, de resistências variadas e complexas. Porque todos os governos virão para cortar direitos, com algum grau ou plano de ajuste. Já não existe crescimento para repartir, apenas miséria e garrote. Portanto, os governos e as classes dominantes vão graduar os níveis de ajuste e repressão: alguns serão mais intensos, outros mais suaves, e outros, descaradamente, com extrema violência de classe. Todos esses regimes têm e terão em comum a defesa do interesse das classes dominantes latino-americanas e estrangeiras.
É por isso mesmo que vão se intensificar os níveis de luta popular. O neoliberalismo traz resistência. Eles sabem, por isso apostam com força na milicada. Porém os povos também sabem, intuem e desejam uma sociedade diferente. Os povos sabem que toda essa exploração precisa de um freio, que é preciso frear tanta arbitrariedade. Aí está toda uma história de luta dos povos indígenas, quilombolas, trabalhadoras e trabalhadores da cidade e do campo, estudantes, e as diferentes expressões e níveis de ação direta que ocorreram no continente. Feitos históricos que apontam um caminho, lutas atuais, recentes, que convocam amplos setores do povo a continuar indo para a rua, para ocupar e recuperar terras, para defender a vida.
Esses tempos que estão vindo exigem de nós, militantes anarquistas organizadas/os politicamente, que intensifiquemos o esforço militante e tratemos de oferecer as ferramentas necessárias ao campo popular para resistir e avançar em uma perspectiva de longo prazo.
Um longo processo de luta nos convoca. Um longo caminho de anseios e esperanças, de experiências compartilhadas, de dores mas também de vitórias, de avanços. O Anarquismo Especifista tem muito a dizer e um papel a assumir na construção dessa sociedade diferente. Nas nossas organizações e espaços militantes tem lugar para todas as pessoas que buscam maiores níveis de militância e compromisso, para todas as pessoas que colocam o melhor de si a serviço da causa das e dos debaixo.
É nesse debaixo que o Socialismo vai encontrar militantes, construtores e construtoras. Podemos dizer que a única alternativa a esse mundo de barbárie é o Socialismo, e que o Socialismo será Libertário ou não será!!!
PELA CONSTRUÇÃO DE PODER POPULAR!!!
FORTALECER A RESISTÊNCIA!!
ARRIBA LAS Y LOS QUE LUCHAN!!
FEDERACIÓN ANARQUISTA URUGUAYA (FAU)
COORDENAÇÃO ANARQUISTA BRASILEIRA (CAB)
FEDERACIÓN ANARQUISTA DE ROSÁRIO (FAR) – ARGENTINA
FEDERACIÓN ANARQUISTA SANTIAGO (FAS) – CHILE
GRUPO LIBERTARIO VÍA LIBRE – COLOMBIA
ROJA Y NEGRA ORGANIZACIÓN POLÍTICA ANARQUISTA (RYN OPA) – BUENOS AIRES, ARGENTINA