Conjuntura

Análise de Conjuntura do Brasil – Junho de 2022

foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Brasil passa por um momento de rupturas e continuidades em 2022. O ano eleitoral concentra as atenções e os esforços de grande parte dos setores da sociedade, e pode acelerar diversos movimentos que em outros períodos caminham de forma mais lenta. Ao mesmo tempo, as classes dominantes impõem suas pautas para que o estado de coisas permaneça como está, com pouca resistência entre os setores mais organizados das classes oprimidas. Mas acreditamos nas capacidades populares para a luta e organização, para destruir esse estado de barbárie e miséria.

Martírio na Amazônia

A notícia do assassinato brutal do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dominic Phillips impactou profundamente vários setores da sociedade, inclusive ganhando destaque internacional. Bruno e Dom foram mortos quando faziam uma expedição pelo Vale do Javari, no oeste amazônico, região onde fica a segunda maior terra indígena do país. Bruno era um indigenista respeitado e profundo conhecedor da região, que conta com povos isolados. Foi coordenador da Funai na região, e exonerado em 2019 do cargo de chefia, por seu trabalho de combate aos crimes ambientais nas terras indígenas. O assassinato político de Dom e Bruno está relacionado à presença de pescadores e caçadores ilegais, a serviço de narcotraficantes, madeireiros e garimpeiros. Essas quadrilhas ganharam ainda mais espaço no governo Bolsonaro, que desmontou órgãos de defesa do meio ambiente e dos povos indígenas, em nome da exploração econômica com a devastação dos biomas, incentivando o genocídio dos povos originários. O episódio também mostra a importância da auto-organização das classes oprimidas, principalmente pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari – Univaja, que realizou as primeiras buscas e foi essencial para o início das investigações, mas também por meio de entidades de servidores da Funai e de jornalistas que ajudaram a denunciar e cobrar resposta do Estado. No mais, não deixa de ter um triste simbolismo o fato de que no governo Bolsonaro foram assassinados um indigenista e um jornalista, em uma expedição em defesa da Amazônia. Dom e Bruno ficarão na memória de todos que lutam pela transformação social.

Também cabe reconhecer que as lutas indígenas têm ganhado relevância especial nesse período, com as grandes mobilizações contra o Marco Temporal, as lutas por demarcação nos diferentes territórios, e as denúncias sobre os desmandos na Funai. Os povos originários têm feito diversos enfrentamentos nesse período mais recente, mantendo viva a chama contra a dominação do Estado e do Capital, e atraindo outros movimentos populares para se mobilizarem.

Disputa interimperialista e impactos na periferia

A guerra na Ucrânia prolonga-se e parece marcar uma nova etapa da disputa pela hegemonia política e econômica mundial, com busca de expansão territorial dos EUA e da União Europeia, por meio da Otan, a tentativa da Rússia de recuperar sua zona de influência, e a China ampliando seus acordos comerciais sobre Ásia, África e América Latina. Enquanto a China vem se consolidando para se tornar a principal economia do planeta, os EUA vão perdendo influência internacional, em meio a problemas internos.

Esse cenário incerto provoca conflitos e impactos na economia global, com desorganização das cadeias de produção (o que acontece desde o início da pandemia), alta nos preços das commodities, principalmente o petróleo, e por consequência aumento da inflação. Quem sofre mais são as classes populares dos países periféricos, com alta dos preços, fechamento de fábricas, mais precarização do trabalho e desemprego. O impacto chegou forte no Brasil, potencializado pelas políticas mais duras de ajuste neoliberal depois de 2015, e tudo isso piorou rapidamente as condições de vida das classes oprimidas.

Economia estagnada

A economia brasileira segue estagnada, em parte devido às políticas neoliberais e antipovo adotadas nos últimos anos, inclusive na pandemia, em parte pela guerra na Ucrânia, mas também pelo desastre da condução de Bolsonaro e militares.

Os grandes organismos do capitalismo mundial preveem crescimento tímido do PIB do Brasil este ano, em torno de 1%, bem abaixo do restante da economia global. O que significa, por aqui, índices ainda altos de desemprego, salários rebaixados e a continuidade da situação de miséria e pobreza. O Banco Central aumentou novamente a taxa básica de juros, em 13,25%, o que só aumenta os lucros dos bancos, atrai capital especulativo, e faz crescer o endividamento da população, prejudicando inclusive o consumo das famílias. O próprio BC assume que a alta dos juros vai enfraquecer a atividade econômica. E os preços seguem subindo: a inflação acumulada nos últimos 12 meses está próxima dos 12%, segundo o IPCA, calculado pelo IBGE.

Enquanto isso, seguem os conflitos em torno dos preços dos combustíveis, com a pressão dos acionistas da Petrobras pelo aumento constante dos preços, seguindo os valores internacionais, e a oposição de fachada do governo Bolsonaro-Militares e de parlamentares aliados. Nesse contexto entra o projeto de privatização da Petrobras, que pode ser apenas uma bravata, mas conta com fortes interesses do grande capital internacional para multiplicar seus lucros com a exploração de petróleo no país.

O que é praticamente certo é a privatização da Eletrobras, a maior companhia do setor elétrico da América Latina, o que representa um risco à soberania energética do país, e vai na contramão do que fazem os outros grandes produtores de energia, que mantêm o controle da maior parte da capacidade de suas usinas hidrelétricas.

A farsa da farsa eleitoral

Bolsonaro e militares voltaram a escalar o discurso contra o STF e o processo eleitoral, estratégia que já vinha sendo preparada há tempos. Está claro que se trata de uma farsa para justificar uma possível derrota nas eleições, e ao mesmo tempo incitar as camadas mais radicais de seus apoiadores, principalmente os grupos armados registrados como Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) e policiais militares nos estados, em uma versão nacional do ataque ao Capitólio, nos EUA. Os preparativos para esse tipo de ação estão tão escancarados que mesmo a mídia hegemônica fala abertamente sobre isso. Nesse caso vale ter atenção especial para o 7 de Setembro, data adotada há alguns anos pela extrema-direita para manifestações ultranacionalistas, e que marca o dia seguinte ao aniversário do atentado contra Bolsonaro, em 2018. Em 2021 já houve uma espécie de ensaio-geral, e a dúvida é até que ponto Bolsonaro consegue mobilizar sua base para uma ação mais violenta, e se há ou não uma cadeia de comando que possa chegar às últimas consequências. Nisso se destaca o papel golpista dos militares que marcou toda a história da formação do Brasil, servindo de apoio a todo projeto reacionário para o país. Bem como a falta de preparação do movimento popular para reagir à altura, limitando-se a apostar na via eleitoral e nas instituições de Estado.

Concretamente, Bolsonaro e militares não parecem contar com sustentação para uma aventura golpista. Não têm apoio dos EUA e da mídia hegemônica, e cerca de 50% da população avalia negativamente o governo. Além disso, contam com oposição de ministros do STF, que apesar do excesso de tolerância vêm tomando algumas medidas para conter os setores mais extremistas, por exemplo com a prisão do deputado federal pelo Rio de Janeiro, Daniel Silveira, e a cassação do deputado estadual do Paraná, Fernando Francischini, por disseminação de fake news. Nesse momento, o STF age como garantidor de um pacto entre os de cima, tentando blindar as investidas golpistas da extrema-direita.

Enquanto Bolsonaro e milicos fazem barulho, o Congresso vai passando a boiada. Os esquemas do orçamento secreto, com superfaturamento de obras e compra de tratores sem necessidade, emendas suspeitas para municípios de prefeitos aliados, além do próprio fundão eleitoral turbinado, enchem os bolsos de parlamentares do Centrão. Propostas reacionárias também vão passando na Câmara, como o ensino domiciliar, antiga pauta dos evangélicos, além do projeto que permite a penhora de imóvel único de famílias com dívidas, reivindicação dos banqueiros. Também voltou a discussão a proposta sobre cobrança de mensalidades em universidades públicas, o que foi engavetado depois das reações, mas a ameaça sempre paira no ar. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mais próximo de Bolsonaro, e o do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), mais próximo da velha direita, fazem uma dupla de policial mau x policial bom, um jogo de cena onde os de cima seguem ganhando.

O Estado Policial de Ajuste endurece com o aumento da crise social. Em São Paulo, a ação policial brutal sobre a região da Cracolândia, em maio, inaugura a campanha eleitoral, com um governador que tenta ficar conhecido entre o público mais reacionário. No Rio de Janeiro, com um governador igualmente desconhecido em campanha, a incursão policial sobre a Vila Cruzeiro envolveu PM, PF e PRF e deixou mais de 20 mortos, um verdadeiro massacre disfarçado de guerra às drogas. A PRF de Bolsonaro também foi envolvida em outra tragédia, com o assassinato a Genivaldo de Jesus dos Santos, em Umbaúba, Sergipe, em circunstâncias revoltantes: abordado por não usar capacete, Genivaldo, que tinha esquizofrenia, foi fechado no camburão e morto sob tortura, com uso de gás pimenta no veículo.

A respeito das eleições, a chapa Lula-Alckmin desponta com grandes possibilidades de vitória, com a crise social que segue e a alta rejeição ao governo de Bolsonaro e militares. O cenário de polarização entre Lula-Alckmin e Bolsonaro-Militares força o eleitorado a definir cedo um voto entre as duas candidaturas, e a eleição pode definir-se já no primeiro turno. No legislativo, a situação que se aponta é de o Centrão seguir dando as cartas, já que goza do fundão eleitoral e a manutenção de currais em diversas regiões do país. E o judiciário pode voltar à velha normalidade, tentando bloquear a extrema-direita em nome de uma harmonia entre os de cima.

Cultura e ideologia

Pesquisa recente do Datafolha apontou que praticamente metade (49%) da população no país se identifica com a esquerda, enquanto a direita tem preferência de 34%, cerca de um terço. Segundo o instituto, é o maior resultado pró-esquerda desde o início da pesquisa, em 2013. Os resultados da pesquisa apontam que 17% são de esquerda, 32% de centro-esquerda, 17% de centro, 24% de centro-direita e 9% de direita. Apesar de questionamentos sobre a metodologia, e o fato de que o que é esquerda para os liberais não significa o mesmo para nós, os números mostram um certo avanço da consciência crítica a pautas da direita e da extrema-direita, e uma abertura maior a ideias relacionadas à esquerda, o que pode ser uma oportunidade para um ascenso das lutas no próximo período. Interessante observar também que, segundo a pesquisa, as ideias de esquerda são mais fortes entre mulheres, jovens até 24 anos, pretos e pessoas com renda mais baixa.

Vemos uma disputa cultural-ideológica relacionada às questões de proteção da Amazônia e às eleições, com diversas críticas ao governo de Bolsonaro e militares. Isso contou inclusive com apoio internacional, como por meio dos atores de Hollywood Mark Ruffalo e Leonardo DiCaprio. Artistas brasileiros também se engajaram contra os ataques à Amazônia e aos povos indígenas, e nas campanhas para que adolescentes tirassem o título de eleitor. Mas essa mobilização não foi tão espontânea quanto parece ser, e contou com impulsionamento de ONGs com financiamento estrangeiro. Entre elas estão a ONG Nossas, que tem como apoiadores instituições como a Open Society, do bilionário George Soros, Skoll Foundation, do bilionário fundador do eBay, e a OAK Foundation, presidida por Douglas Griffith, diplomata de carreira do governo dos EUA; e a Girl Up, de origem estadunidense, criada pela Fundação da ONU e que tem entre os financiadores Disney, Google e a Millenium Challenge Corporation, agência ligada ao Congresso dos EUA. Portanto, instituições com interesses imperialistas estão influenciando fortemente o debate público no Brasil.

Outro assunto que ganhou destaque foram os contratos supostamente superfaturados de cantores sertanejos com prefeituras de cidades pequenas. O tema ganhou as redes sociais por algumas semanas, e escancarou as relações entre esses músicos com o agronegócio e a corrupção política.

Na Educação, seguem os ataques do governo de Bolsonaro e militares. Em maio, foi anunciado o corte de quase 15% do orçamento do MEC, em cerca de R$ 3,2 bilhões, atingindo universidades, hospitais universitários e o Inep, que organiza o Enem. O argumento foi o cumprimento do Teto de Gastos. Após reações, o corte foi reduzido pela metade. Além disso, deputados federais da direita resgataram a PEC 206/19, que institui cobrança de mensalidade nas universidades públicas. O projeto saiu de pauta, mas não deixa de ser uma ameaça que pode retornar. A autoria da PEC deixa claro quem está por trás da proposta: o proponente é o General Peternelli, oficial de carreira formado na Aman, e Kim Kataguiri, do MBL, think-tank liberal, com financiamento da Atlas Network. A iniciativa de cobrança de mensalidade nas universidades públicas consta no documento “Projeto de Nação – o Brasil em 2035”, elaborado por fundações ligadas aos militares, como o instituto General Villas-Boas, e coordenado pelo Gen. Rocha Paiva, da ONG do torturador da ditadura Carlos Alberto Brilhante Ustra. O Banco Mundial também endossa a medida, conforme consta em documento de 2017, encomendado pelo governo de Michel Temer. Portanto, o ataque à Educação está diretamente ligado aos interesses do grande capital internacional e das castas militares, incomodados com a presença das classes populares no ensino superior e na pesquisa, que de certa forma podem construir uma soberania popular sobre o conhecimento.

O aprofundamento da dominação

A concentração de riqueza avança em todo o mundo, em meio à pandemia da covid-19 e à guerra na Ucrânia. Relatório da Oxfam aponta que o clube dos bilionários ganhou 573 novos membros desde 2020, enquanto a maior parte da população mundial empobreceu. A riqueza dos 2.668 bilionários do mundo corresponde hoje a 14% do PIB mundial. Entre os que lucraram mais estão magnatas dos setores de alimentos, do petróleo e gás, da indústria farmacêutica e da tecnologia. No Brasil, o número de bilionários em dólares subiu de 42 pra 62 desde o início da pandemia, segundo a lista da Forbes. São banqueiros e barões do agronegócio e da pecuária, dos setores de tecnologia, de bebidas e da saúde que fazem forte lobby pelas privatizações e outras pautas neoliberais. Mesmo uma demanda reformista como a taxação das grandes fortunas encontra forte resistência, começando por parlamentares financiados pelos bilionários.

Já os militares vêm se mostrando cada vez mais uma força coesa e unificada no governo e na estrutura do Estado. Os milicos comandam ministérios importantes e conduzem várias das políticas de governo. Segundo pesquisa do Ipea, entre 2013 e 2021 a presença de militares em cargos e funções comissionadas do governo federal aumentou quase 60%. Somente em papéis civis, a presença militar subiu quase 200%, uma verdadeira militarização do Estado. A presença cresceu principalmente nos cargos de escalão mais alto, ou seja, em posições de comando e com salários maiores, em setores como Economia, Saúde, Educação e Meio Ambiente. O Exército foi a força de origem de onde saiu a maior parte dos militares para cargos civis, e os oficiais superiores são o grupo mais representativo. Essa presença cada vez maior no Estado permitiu com que fundações ligadas a militares da reserva elaborassem o documento “Projeto de Nação – o Brasil em 2035”, uma versão militar da “Ponte para o futuro” do PMDB, que coloca o “movimento globalista” como principal ameaça ao país, ao mesmo tempo que traz propostas neoliberais como a exploração da Amazônia e de terras indígenas, a cobrança de mensalidade nas universidades públicas e o fim da gratuidade do SUS. O documento evidencia a formação de um Partido Militar reacionário, ligado às teorias da extrema-direita internacional e de viés ultraliberal. Não podemos subestimar a capacidade de articulação a longo prazo e os ímpetos golpistas da milicada.

A crise se abate sobre a classe trabalhadora

Em 2021, a renda média das pessoas que têm algum rendimento foi de R$ 2.265 por mês, o menor valor calculado pelo IBGE em uma década. Cerca de 11 milhões de pessoas estão desempregadas no país, número que vem caindo nos últimos meses, mas cerca de 40% dos trabalhadores ocupados estão na informalidade, sem o conjunto de direitos garantidos a quem tem carteira assinada. As mulheres, principalmente as negras, foram duramente atingidas: segundo o Dieese, entre 2019 e 2021, a força de trabalho feminina foi reduzida em 1,1 milhão, sendo que 925 mil eram negras.

A classe trabalhadora convive com a carestia: a cesta básica de alimentos calculada pelo Dieese ficou em R$ 777,93 no estado de São Paulo em maio, 20% mais cara que um ano atrás. 77% das famílias estão endividadas, segundo a Confederação Nacional do Comércio.

A fome voltou ao cotidiano de milhões de famílias. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 33 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente, 14 milhões de pessoas a mais do que em 2020. Segundo os pesquisadores, o país regrediu aos níveis de fome da década de 1990. O levantamento também aponta que 125 milhões de pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar, quase 60% da população do país.

Toda essa piora da condição de vida da classe trabalhadora se agravou pelas políticas neoliberais a partir de 2016, como o Teto de Gastos, a Reforma Trabalhista, a Lei da Terceirização, a Reforma da Previdência e a política de preços da Petrobras, que com a pandemia e os impactos da guerra na Ucrânia tornou ainda mais dramática a vida de nosso povo.

Os setores mais organizados dos trabalhadores têm enfrentado dificuldades para resistir aos ataques. A inflação alta é uma barreira para as negociações coletivas. Segundo o Dieese, no primeiro trimestre do ano cerca de 40% dos acordos e convenções coletivas tiveram reajuste abaixo da inflação, ou seja, as categorias perderam poder de compra. O valor médio dos pisos salariais foi de R$ 1.387,82, muito abaixo do suficiente para garantir a sobrevivência de uma família.

Mas a classe trabalhadora segue em luta: os/as servidores/as do INSS fizeram uma longa greve, que durou 52 dias, as e os trabalhadores de Furnas também paralisaram no começo do ano. Entregadores de aplicativos vêm realizando dias de paralisações, em um setor que não tem uma tradição sindical consolidada. Neste ano houve greves mais localizadas, como das trabalhadoras e trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional, das/dos metroviárias/os da CBTU, em Belo Horizonte, dos garis da Comlurb, no Rio de Janeiro, das/dos motoristas e cobradores/as do transporte coletivo em São Paulo, entre outras. Porém, não há uma articulação organizada dos sindicatos e centrais para greves unificadas, em parte pela própria estrutura sindical, que estabelece diferentes datas-base de negociação para cada categoria, mas principalmente pelo enfraquecimento das entidades sindicais e a falta de vontade política de estabelecer um calendário unificado de lutas em ano eleitoral. Assim, a classe trabalhadora vai perdendo poder de compra e também não consegue fazer frente aos ataques dos governos e do grande capital.

O mesmo acontece com o movimento estudantil, que vem sofrendo diversos ataques, como a ameaça de cobrança nas universidades públicas e os cortes na Educação. As entidades estudantis, em especial a UNE, organizaram no início de junho um dia de manifestações, mas muito limitado, restrito às maiores capitais e que não envolveu outros setores. A intenção parece ser manter as lutas em nível baixo para que não atrapalhem a eleição de Lula-Alckmin.

Outros movimentos populares passam por refluxo semelhante, exceção feita aos movimentos de moradia, que vêm organizando diversas ocupações urbanas. Os impactos da pandemia, com demissões, inflação alta e despejos obrigou muitas famílias a ingressarem nesses movimentos, que realizaram diversas ocupações de prédios e terrenos nos últimos meses. As ocupações escancaram o poder do grande capital, com despejos sendo realizados mesmo com decisão do STF contrária, o que se tornou mais dramático no período mais frio do ano.

Mulheres mantêm a resistência

As mulheres voltaram às ruas neste 8 de Março, depois de dois anos de pandemia. A data é um marco importante na unidade pelas pautas das mulheres das classes oprimidas, unindo toda a diversidade de movimentos sociais. Neste ano um acontecimento importante foi a mobilização pela cassação do deputado estadual de São Paulo Arthur do Val, o Mamãe Falei, do MBL, após fazer falas misóginas contra mulheres ucranianas. Já sem qualquer apoio político, o deputado teve o mandato cassado em maio. Porém, muitas mobilizações adotam a perspectiva de que basta às mulheres ocuparem mais cargos do Estado e do Capital para mudar essa situação, como se a violência não fosse estrutural e inerente ao sistema.

As mulheres seguem sofrendo com a violência patriarcal. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre março de 2020 e dezembro de 2021 foram registrados 2.451 feminicídios e mais de 100 mil casos de estupro de mulheres e meninas. Os números são subnotificados, e acredita-se que muitos registros não foram feitos no período mais restritivo da pandemia, mas estão próximos da média de 2019, o que mostra que a violência machista e patriarcal é uma constante no país.

Além disso, o governo de Bolsonaro e militares segue ameaçando atacar direitos das mulheres. Uma cartilha publicada pelo Ministério da Saúde em junho dizia não existir aborto legal no Brasil, e que todo aborto é crime, uma mentira, já que a legislação permite aborto em situações de estupro, de risco à saúde da mulher e de anencefalia do feto. A cartilha diz ainda que o aborto prevê investigação policial, uma forma de intimidar mulheres que buscam os serviços de saúde para interromper a gravidez nas situações permitidas. Em um contexto em que as mulheres argentinas e colombianas conquistaram o direito ampliado ao aborto legal, e o direito é ameaçado pela Suprema Corte dos EUA, a criminalização do aborto é pauta importante para os setores mais conservadores do Brasil, ainda mais em ano eleitoral.

Racismo se multiplica

Os casos de racismo vêm se multiplicando no país. Episódios de injúria racial se reproduzem nas ruas, nos estádios de futebol e até em câmaras municipais e assembleias estaduais. Além disso, casos de assassinato com motivação racista vêm ganhando as manchetes, como na morte do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, o assassinato de Genivaldo em Sergipe e outros crimes cometidos pela polícia em comunidades de maioria negra, além do encarceramento em massa de jovens negros. O movimento negro vem se mobilizado para denunciar e exigir justiça e reparação, e os casos emblemáticos têm levantado na sociedade a importância da pauta, mas também enfrenta a concorrência com a propaganda liberal que debate o racismo estrutural sem discutir as verdadeiras estruturas que perpetuam o racismo, fortemente ligadas à dominação do Capital, a história brasileira colonial-escravocrata e a ideia de superioridade branca.

Diversidade sexual

Neste ano o IBGE divulgou o primeiro levantamento que estima a orientação sexual dos brasileiros. Segundo o instituto, 2,9 milhões de pessoas, cerca de 2% da população, declaram-se lésbicas, gays ou bissexuais, com base em dados coletados em 2019 pela Pesquisa Nacional de Saúde. Homossexuais corresponderiam a 1,8 milhão de pessoas, o que inclui homens e mulheres, e bissexuais somariam 1,1 milhão. Os dados são subnotificados, por conta do estigma – 2,3% dos entrevistados não responderam à pergunta -, e a questão transgênero não foi incluída na pesquisa. Já uma pesquisa do Datafolha apontou números diferentes: 4% das pessoas entrevistadas se identificaram como homossexuais, 4% bissexuais, 4% não responderam, e 3% deram outras definições. As pesquisas sofrem críticas dos movimentos ligados ao tema, mas ajudam a dar uma noção do tamanho desse público, que soma milhões de pessoas sujeitas a violências cotidianas por sua identidade de gênero ou orientação sexual, à precarização, ao desemprego e à fome, e que potencialmente sentem necessidade de que a sociedade seja transformada.

A violência contra as pessoas LGBTQIA+ no Brasil é latente, mas ainda carece de dados mais concretos. Os números mais consolidados são levantados pelos próprios movimentos, com base em casos encontrados no noticiário e em redes sociais. De acordo com o Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil, em 2021 foram 316 mortes violentas, aumento de 33% em relação ao ano anterior. Gays são 46% das vítimas, seguidos por travestis e mulheres transexuais, que correspondem a 45%. O documento denuncia que o Estado não é apenas omisso nas violências, mas também agente direto, por meio de políticos da extrema-direita, paramilitares e grupos neonazistas que ganharam força com a eleição de Bolsonaro, e líderes religiosos fundamentalistas que compõem a base de apoio do presidente. Os dados reforçam a necessidade de um movimento combativo que faça avançar as pautas e dar resposta à violências.

Mudanças Climáticas

A população brasileira vem sofrendo com a catástrofe ambiental. Desde o começo do ano, fortes chuvas causaram morte e destruição nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Os efeitos das mudanças climáticas já impactam concretamente na realidade das classes oprimidas, sendo fatais nas comunidades onde vivem de forma mais precária trabalhadores pobres e negros, o que escancara o racismo ambiental. Soma-se a isso o avanço da mineração, do garimpo e de outras atividades sobre terras indígenas, quilombolas e ribeirinhas, que ganharam ainda mais apoio sob o governo Bolsonaro, mas que sempre representaram uma ameaça às vidas humanas e não-humanas. Além das responsabilidades dos governos na falta de políticas de moradia e de preservação ambiental, cabe reforçar que essas tragédias são reflexo das escolhas pela exploração desenfreada de combustíveis fósseis e pela destruição do meio ambiente, que aumentam o abismo social ao piorar as condições de vida de grande parte da população enquanto tornam os super-ricos cada vez mais ricos.

Violência social e política

A situação de aumento da pobreza e de precarização da vida como um todo forma um barril de pólvora que se expressa de diversas maneiras nas classes oprimidas. O uso da violência de forma dispersa é um exemplo disso, seja em resposta a injustiças, como problemas no transporte público, ou mesmo de forma mais gratuita. Nisso vale olhar com atenção para a violência das torcidas de futebol contra atletas e seus clubes, em situações que nem chegam a ser de crise nesses clubes, mas acabam catalisando a raiva de trabalhadores brutalizados em seu cotidiano. Curioso que foram as torcidas organizadas de futebol o setor que deu início aos enfrentamentos à extrema-direita, em 2020, o que demonstra que é um campo aberto para esse espírito combativo. Há um clima geral de insatisfação social e dificuldades de dar vazão a isso, e cabe observar esses movimentos e apresentar uma alternativa de luta, apontando nossos verdadeiros inimigos.

O período eleitoral também pode ser um momento de violência política. Levando em consideração que Marielle e Anderson foram assassinados em 2018, em meio a uma intervenção militar e em ano de eleições para a presidência e governos estaduais, não podemos descartar a possibilidade de atentados com motivações políticas. O próprio assassinato brutal de Dom e Bruno na Amazônia, e as ameaças que políticos da esquerda vêm recebendo mostra que não podemos menosprezar a capacidade de os setores mais reacionários apelarem para a violência neste período.

As movimentações à direita e à esquerda

À direita, conforme chegam as eleições cresce a cruzada cultural-ideológica por parte dos setores mais reacionários, com reforço nas pautas de costumes, que além de tudo servem como cortina de fumaça sobre os problemas concretos que sofrem as classes oprimidas no país, como a questão econômica e a violência de Estado. Desinformação e fake news são os instrumentos dessas facções para seguir com seu projeto, representado principalmente na campanha de Bolsonaro e militares pela reeleição.

Já a direita política mais tradicional segue com dificuldades de se viabilizar como alternativa eleitoral à presidência. O projeto de uma “terceira via” unificada entre os partidos tradicionais das oligarquias brasileiras tem como principal dificuldade a falta de povo. Quem segue ganhando é a direita mais fisiológica no Congresso Nacional, que tem acesso privilegiado ao orçamento público, e garante a sustentação do governo de turno.

Esse esvaziamento de uma candidatura de terceira via também se dá pelo fato de que um setor está representado na chapa Lula-Alckmin, que faz inúmeras concessões ao centro político, um projeto rebaixado, ou quase inexistente, e alianças espúrias com inimigos das classes oprimidas, inclusive na costura das candidaturas nos estados.

A polarização entre Bolsonaro-Militares e Lula-Alckmin também impactou um setor importante que se localizava à esquerda do petismo. Parece marcar a capitulação final do PSOL, com o apoio quase acrítico a Lula e a descaracterização do partido fundado como uma oposição de esquerda ao PT – a federação partidária com a Rede é outro forte sinal dessa descaracterização. O cenário político-eleitoral tem provocado rupturas e reorganizações em correntes da esquerda, como setores do próprio PSOL, além do PCdoB, Consulta Popular (que passou por uma cisão), entre outras.

Mais à esquerda, partidos trotskistas organizados no Polo Socialista, como o PSTU, e de matriz stalinista como UP/PCR e PCB, apresentam-se com um discurso mais crítico à conciliação de classes representada por Lula-Alckmin, mas ainda têm pouca força social para mobilizar o conjunto das classes oprimidas para uma maior combatividade.

O autonomismo tem fomentado lutas localizadas, como com trabalhadores de aplicativos, manifestações em apoio aos povos indígenas, o que mantém uma uma chama acesa, mas também não consegue se ampliar para um movimento de massa.

As e os anarquistas também se inserem nesse caldo, com lutas localizadas e ainda dispersas entre si. Nossa corrente ainda precisa se apresentar como uma referência de militância nos diversos setores, fomentando as lutas e avançando na organização e combatividade das classes oprimidas.

Cenários para o próximo período

Como dissemos, há uma grave crise social que pode dar origem a um novo processo de lutas a qualquer momento. Porém levando em conta as eleições presidenciais, podemos pensar em três cenários para o próximo período, do mais provável para o menos:

  1. Vitória, por ampla diferença, da chapa Lula-Alckmin sobre Bolsonaro-Militares: os defensores do argumento de fraude estariam mais isolados e o questionamento sobre as eleições seria enfraquecido, com algumas ações preventivas do STF. Movimento popular ficaria apaziguado, com conflitos entre as instituições reduzido. Governo Lula-Alckmin se forma com um projeto muito rebaixado, com uma repactuação de classes e entre as instituições burguesas, mas sem resolver a profunda crise social diante do cenário econômico interno e externo, sem avanços sociais, o que abre caminho para insatisfação popular no médio prazo.
  2. Vitória por pouca diferença da chapa Lula-Alckmin: questionamentos sobre possível fraude, com disparos massivos de fake news em uma eleição mais conflituosa. Risco de algumas ações violentas nas ruas e atentados próximos aos dias de votação. Aqui há uma dúvida se Bolsonaro e militares teriam força para algo semelhante ao ataque ao Capitólio, nos EUA, (se não pior), se as instituições burguesas conteriam esse tipo de ação. Sem apoio dos EUA e da mídia hegemônica, é provável que uma tentativa golpista não tenha sucesso. Cenário de movimentos populares organizados recuados, com pouca capacidade de resposta a uma tentativa golpista, e confiança excessiva na institucionalidade burguesa.
  3. Vitória de Bolsonaro-Militares nas urnas, por margem estreita: Hipótese menos provável, e também mais imprevisível. Institucionalidade deve se manter em conflitos, mas vai ceder mais a medidas reacionárias, com fortalecimento da extrema-direita no poder, com a viabilização de um projeto de ataques aos movimentos populares e aos grupos mais oprimidos da sociedade, e uma relação mais profunda do Estado com o crime. Insatisfação popular se mantém alta, com pobreza e miséria. Movimentos precisariam responder rapidamente, mas o apego à institucionalidade e a própria violência do Estado pode dificultar isso, o que pode dar origem a um Estado Policial de Ajuste ainda mais autoritário, e o sufocamento dos movimentos de contestação.

É importante manter atenção aos próximos acontecimentos pra projetar cenários do acirramento de um possível golpe e ruptura institucional – o documento dos militares estabelecendo um projeto de poder até 2035 deixa evidente essa intenção. Elementos de cada cenário podem estar presentes em outros, e novos elementos podem surgir neste próximo período, em um contexto de alta insatisfação social, de violência e de conflitos entre instituições de Estado e potências imperialistas.

Nossa atuação

Como anarquistas, para este período acreditamos que é importante seguir fomentando a ação direta onde é possível, já que nesse segundo semestre os grandes movimentos sociais e sindicais não têm interesse no acirramento dos conflitos, e preferem manter as lutas mornas para não atrapalhar a eleição. Devemos continuar denunciando e combatendo as políticas de ajuste e de ataques às classes oprimidas, fomentando a combatividade onde houver oportunidade, aliando-nos aos setores que seguem com disposição de luta. Nisso é importante construir a Campanha de Luta Contra a Fome, como uma estratégia de mobilização concreta junto às classes oprimidas.

Além disso, devemos seguir alertas aos cenários de explosão social por questões concretas do nosso povo, ou a alguma tentativa golpista, que mais que uma ameaça à institucionalidade, representa uma séria ameaça aos movimentos populares e à militância mais combativa, portanto deve contar com uma resposta decidida do conjunto dos movimentos populares. Porém, caso o cenário de lutas se mantenha em temperatura baixa, cabe a nós entender o momento de refluxo e afiar nossas ferramentas para nos fortalecermos para o próximo período.

POVO FORTE CONTRA O SISTEMA DA FOME E DA MORTE!

LUTAR, CRIAR, PODER POPULAR!

Coordenação Anarquista Brasileira
Junho de 2022