Conjuntura

A carreata da morte: a elite brasileira e a tragédia popular do covid-19

Desde 2016, abriu-se um novo período de arranjo de forças da sociedade brasileira. As elites nacionais, cansadas da equação que lhes garantia altos ganhos em troca de algumas benesses para as e os de baixo, decidiram embarcar num golpe político que conformaria um novo bloco de forças sociais. Não bastava mais realizar as reformas liberais de maneira homeopática, mas a ideia de um governo de choque, um Estado de Ajuste, rapidamente transformado em Estado Policial de Ajuste, ganhou forma com o governo Temer.

Contudo, as reformas políticas que visavam principalmente a dilapidar o patrimônio nacional em favor da burguesia estrangeira, destruir os direitos trabalhistas e reduzir ainda mais os já combalidos serviços de proteção social, não foram plenamente efetivadas, ainda que as reformas de Temer tenham sido aplicadas em tempo recorde. O novo arranjo deste bloco de poder, vendo que seus candidatos tradicionais poderiam ser derrotados no pleito, consolida a vitória da extrema-direita bolsonarista associada ao ultraliberalismo de Paulo Guedes. Por meio de uso massivo de fake news, da impugnação jurídica do candidato que não despertava mais tantas simpatias (ainda que tenha sido um fiel aliado na fase anterior) e da mobilização da opinião pública, colocaram o capitão em seu posto para prosseguir na missão planejada em 2016.O comportamento dos liberais e da burguesia ilustrada em relação aos excessos reacionários de Bolsonaro sempre foram, nesse sentido, complementares: apoiava-se o projeto de morte de Paulo Guedes, mas podava-se os galhos reacionários em excesso. A ultradireita quase fascista e os liberais eram engrenagens de um mesmo sistema antipovo, em que uma oposição de esquerda e republicana perdia-se nas minúcias do tabuleiro já dominado pelos de cima.

Todavia, a chegada do COVID-19 ao Brasil obrigou a uma mudança de rota no funcionamento dessa máquina sistemática de moer pobres. As elites brasileiras logo abandonaram sua fachada humanitária, e a breve “disputa” entre governadores e governo federal em torno da manutenção ou não do isolamento social foi solucionada. 

A burguesia brasileira e as elites econômicas se mobilizaram muito cedo para manter a engrenagem da exploração funcionando, com o tema “a economia não pode parar”. Consigna macabra utilizada pela burguesia e pelos políticos italianos, que gerou milhares de mortos e que seria replicada conscientemente aqui. Crônica de um desastre anunciado e planejado. No dia 20 de março, poucos dias depois das primeiras mortes por COVID-19 (tínhamos 11 mortos oficiais no Brasil), um grupo de empresários ligados ao bolsonarismo iniciou uma campanha defendendo a volta ao trabalho e a continuidade das atividades econômicas. Luciano Hang (Havan), Junior Dursk (Madero), Alexandre Guerra (Giraffas), Roberto Justus (Newcom). Não nos enganemos. Havia bastante informação circulando no mundo para garantir que a única saída para combater o vírus era o isolamento social, e quem não o fizesse pagaria um alto preço. Não falta conhecimento nem formação às nossas elites. Sua posição exige uma alta dose de desumanidade, tal como os diversos membros da SS nazista que possuíam doutorado e eram, portanto, muito bem formados, mas cruéis, pela sua posição e ofício. Sabiam que estariam seguros dentro de suas fortalezas e insensíveis historicamente ao massacre dos mais pobres, era um preço baixo a se pagar para estes. E, com sua tropa de choque de soldados da morte, recrutados na parte mais putrefata dos setores médios brasileiros, realizaram as chamadas Carreatas da Morte, onde bolsonaristas convictos, alimentados pela maquinaria das fakenews construída nos anos anteriores, defendiam a reabertura total do comércio com “protestos” de dentro de automóveis importados.

Paralelamente a esse circo de horrores, o ultraliberalismo, representado por Paulo Guedes e seus tecnocratas midiáticos, restringe e dificulta o acesso ao apoio financeiro aos trabalhadores, gerando filas enormes nas agências da Caixa e fazendo com que as e os trabalhadores precarizados se arrisquem nas ruas para conseguir seu ganha pão. Enquanto os reacionários liderados por Bolsonaro empurravam os trabalhadores para o abismo com uma mão, o ultraliberalismo o fazia com a outra. 
A pandemia que atinge o país nasceu, então, com uma contradição capitalista insolúvel. Derrotar o vírus passaria por garantir o funcionamento apenas de serviços essenciais, tal como uma economia de cuidado (alimentos, remédios, energia elétrica, telecomunicações) e paralisar toda a cadeia produtiva que não se enquadre nesse aspecto para proteger a população, configurando um isolamento social profundo, que protegesse as vidas. Isso implicaria no pagamento dos salários dos trabalhadores assalariados e no apoio ao grande contingente de trabalhadores precarizados do país (40% da mão de obra), diminuindo a taxa de lucro dos capitalistas e do sistema financeiro.

Contudo, o arranjo do bloco de poder inaugurado em 2016 e formalizado como aliança mais duradoura em 2018 não entraria em campo durante a pandemia com uma nova tática de jogo. Apesar da modesta ponderação do STF em dar um cartão amarelo – alimentando a ilusão de que o sistema se autorregula – para o time ultraliberal e bolsonarista, o resultado do jogo já estava dado. Desde a reunião de 07 de maio, em que empresários atravessaram a praça dos três poderes, ao lado de Bolsonaro e Guedes, para encontrar Tófolli, o destino do isolamento foi determinado. Quem organiza o jogo escolhe como são as regras. E as elites estavam ali, representadas por empresários da indústria química, de calçados, da indústria elétrica e eletrônica, da indústria farmacêutica, do cimento, têxtil, comércio exterior, máquinas e equipamentos, brinquedos, eletroeletrônicos, etc., determinando a morte de mais milhares de trabalhadores (já eram 9.146 mortos oficiais).

Nessa equação maldita e macabra, em que os de cima, com beneplácito da oposição “chapa branca” do STF, escorada na aliança bolsonarista, passa a ter outro ator relevante como fiador do massacre que viria. O verde-oliva da farda militar, que deu estabilidade à aliança em 2018, ala inclusive que foi elogiada pelos hoje “horrorizados” repórteres da Rede Globo, era o funcionário perfeito para fazer com que os cadáveres de milhares de trabalhadores fossem tratados como simples números. Com técnicas oriundas da ditadura militar, passaram a negar acesso aos dados aos pesquisadores e jornalistas, acabaram com as coletivas de imprensa do Ministério da Saúde e mudaram até a forma de contabilizar os mortos. O resultado é que os 100.000 mortos oficiais podem ser na realidade 150.000, devido a subnotificação e a falta de testes.

Desde o começo do descontrole sobre o número de infectados, que veio caracterizando a tragédia da primeira centena de milhares de óbitos no país, a pandemia do COVID-19 promovida pelos de cima tem destino certo: as classes populares, em especial, o povo preto. Se anteriormente já se constatava que o maior número de mortos vinha sendo nas periferias brasileiras (com o caso emblemático da empregada doméstica que morre pelo vírus trazido pela patroa de sua viagem à Itália), novos dados comprovam que os maiores índices de infecção são encontrados junto ao setores mais desfavorecidos economicamente. Ou seja, proporcionalmente, o número de mortos é muito maior entre trabalhadores de carteira assinada, informais, autônomos e donas de casa, assim como entre as pessoas que dependem do transporte coletivo ou que só têm suas próprias pernas para se deslocar ao trabalho.

Para completar a tragédia popular, as mesmas elites que determinaram, junto aos seus aliados, o fim do isolamento social, promovem, por meio do liberalismo com tintas “sociais”, a ideia de que o empresariado está apoiando financeiramente o combate ao COVID-19, com doações pontuais. Apenas um exemplo: enquanto as Lojas Americanas permaneciam com suas unidades abertas por meio de ordens judiciais e malabarismos (como colocar alimentos, configurando serviço essencial), fazendo girar o mecanismo da morte, apresentam-se nos programas de TV como financiadoras de fundos de pesquisa contra o vírus.

A elite brasileira, portanto, é agente e cúmplice da tragédia que tem em Bolsonaro o seu funcionário da morte mais dedicado. O bolsonarismo segue ainda apoiado por grandes setores da pequena e da média burguesia brasileira, e são esses setores os principais responsáveis por cada trabalhador/a morto/a pela insanidade bolsonarista.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *