23 DE ABRIL – DIA MUNDIAL DO LIVRO: O QUE O ANARQUISMO TEM A VER COM ISSO?
A história da ideologia anarquista está profundamente enraizada na luta contra a classe dominante. Tal perspectiva identifica os aparelhos jurídico e militar estatais como instrumentos a serviço da burguesia, empregados para reprimir e subjugar as vidas nos locais de trabalho, moradia e lazer. A exploração do trabalho é concebida como uma das principais fontes de acumulação da riqueza burguesa. Da mesma forma, a cultura dominante é propagada por meio de instituições religiosas, corporações midiáticas e organizações não governamentais que, em última instância, operam em consonância com os interesses do capital.
Nos campos da política, da economia e da cultura, compreendemos que a dominação manifesta-se por diversas plataformas — inclusive pelo livro. Ao longo de sua trajetória, o anarquismo manteve uma relação histórica com o ato de ler, escrever, traduzir, editar, publicar, circular e alfabetizar. Iniciativas como clubes de leitura e a promoção de bibliotecas sociais, populares e comunitárias são expressões concretas desse vínculo. No plano militante, o trabalho de propaganda, divulgação e agitação do anarquismo se constitui tanto no nível político quanto no social, com atuação em sindicatos e demais movimentos sociais. Destaca-se também a participação de diversos companheiros e companheiras em múltiplas facetas do trabalho editorial, muitas vezes exercido de forma profissional, mas fortemente marcado pela experiência coletiva da militância política anarquista.
Nas últimas décadas, tem-se intensificado o interesse acadêmico pela história do livro. Contudo, no campo militante ainda são escassas as abordagens que relacionam o anarquismo e livro. Mas existe, como uma passagem do depoimento de Juan Carlos Mechoso (URU, 1935 – 2022), ao rememorar o período anterior à fundação da Federação Anarquista Uruguaia (FAU), em 1956 — organização irmã da Coordenação Anarquista do Brasil (CAB) no âmbito da Coordenação Anarquista da América Latina (CALA). Em entrevista, Mechoso relata:
“…o Ateneu do Cerro e sindicatos que possuíam grandes bibliotecas. Estes ambientes buscavam impulsionar a leitura e criar um ambiente para a troca entre os militantes. Muitos materiais anarquistas e outras obras afins ou de interesse geral eram lidos. Refiro-me especialmente ao meio operário.” (MECHOSO, 2014)
Assim, entre os subterrâneos das lutas populares — da América Latina à Europa, da Ásia à África — os livros circularam como instrumentos de resistência e formação. Desde os documentos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), passando pelos escritos de Malatesta organizados em brochuras, pelos registros da Comuna de Paris, até as obras de Neno Vasco, constata-se o esforço coletivo para traduzir obras e torná-las acessíveis às pessoas não falantes dos idiomas originais. Criavam-se círculos de leitura, escuta e debate entre as classes oprimidas organizadas em seus territórios de luta.
Em contextos repressivos, como durante as ditaduras latino-americanas e os regimes de socialismo de Estado, o livro anarquista desempenhou um papel fundamental como meio de difusão ideológica, de fomento à cultura autogestionária e de sustentação da resistência libertária. Essa resistência manifestou-se por diferentes meios, incluindo a luta armada, os movimentos de massa e as expressões artísticas.
Ao lerem poesias, peças teatrais, romances, novelas e contos do realismo e naturalismo, os militantes identificavam elementos potentes de seus cotidianos opressivos e da luta contra a dominação imposta por governos e patrões. Formavam sujeitos políticos, fomentavam rebeldias e impulsionavam ações organizadas vinculadas às experiências materiais da vida, como o trabalho militante da ação direta.
Ao longo de nossa trajetória, consolidou-se entre nós o debate sobre o uso da ciência e o papel que ela pode desempenhar na revolução social. Nesse sentido, as ferramentas teóricas utilizadas no campo anarquista são diversas. Compreendemos a ideologia como um guia político, enquanto a ciência é concebida como instrumento para a interpretação crítica da realidade. Como escreveu Malatesta, em 1913, no artigo Ciência e Reforma Social: “nós não somos anarquistas porque a ciência nos ordena que o sejamos; mas somo-lo, entre outras razões, por desejarmos que todos possam gozar as vantagens e satisfações que a ciência proporciona.”
Esse texto, como tantos outros, inicialmente publicado como artigo, foi posteriormente reunido em brochuras e livros que circularam em nossos meios. A propagação e domínia de elementos da ciência por nossa classe é fundamental para construir uma vida digna, em que o prazer e a alegria se soma com as demais formas e tradições saberes originários e populares, sem hierarquização. O livro, assim, consolidava-se como uma plataforma de revolta, articulando pensamento crítico, ação política e transformação social.
O 23 de abril: dia mundial do livro.
Em 1995, a UNESCO — Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — instituiu o dia 23 de abril como o Dia Mundial do Livro. Trata-se de uma entidade vinculada aos Estados-nações membros da ONU, criada em 1945 no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial (1939–1945), o marco se inscreve no projeto liberal. A partir dos documentos políticos da CAB (Coordenação Anarquista Brasileira), evidencia-se a oposição ao modelo político dos Estados-nações, bem como a rejeição ao nacionalismo e à ideologia liberal que sustenta organismos como a UNESCO. O anarquismo defende o internacionalismo, a solidariedade de classe, o federalismo libertário, a democracia direta e a autogestão — princípios profundamente divergentes dos pilares ideológicos da organização internacional que celebra essa data.
Ainda assim, é preciso tomar o contexto comemorativo do Dia Mundial do Livro para iniciar o debate sobre o livro e anarquismo, assim como instigar os trabalhos em torno dos livros, a educação e cultura popular realizada por movimentos sociais e organizações populares. Afinal, tanto a produção quanto a leitura dos livros envolvem a ação cotidiana e invisibilizada de inúmeros trabalhadores e trabalhadoras — nas gráficas, nas editoras, nas distribuidoras, nas bibliotecas, escritoras e leitoras — que são, em última instância, parte da engrenagem de exploração imposta pela classe dominante. A escolha do dia 23 de abril como data simbólica remete à morte de três autores reconhecidos como clássicos da literatura da modernidade: William Shakespeare (Inglaterra), Miguel de Cervantes (Espanha) e Inca Garcilaso de la Vega (Peru). No entanto, nosso documento não abordará os aspectos artísticos desses autores, mas faz uma crítica à seleção simbólica feita por instituições da ordem dominante.
A opção por nomes associados ao cânone europeu revela, de forma sintomática, o caráter eurocêntrico da data. Como analisa Barros, “o eurocentrismo entra aqui como uma visão adaptativa que oferece a promessa de que a imitação do modelo de vida, dos padrões europeus, sua civilidade e religião fornecerá o sucesso vindouro dessas economias dependentes.” Esse pensamento, para se naturalizar, precisa apagar ou desqualificar tudo o que não é europeu. Como ideologia dominante, o eurocentrismo legitima não apenas a modernidade capitalista, mas também a ideia de que a desigualdade global é passageira e resultado da “incapacidade” de povos não europeus de se adaptarem aos padrões hegemônicos.
Nesse sentido, a ciência e as diferentes linguagens artísticas — frequentemente veiculadas por meio da plataforma do livro — acabam operando, em muitos casos, como reprodutoras de uma perspectiva eurocêntrica, capitalista, racista, patriarcal, heteronormativa e pautada por uma moral judaico-cristã. Essa estrutura simbólica e material serve aos interesses do colonialismo, do imperialismo, das guerras, das ditaduras, dos governos e dos patrões. Para o anarquismo, o livro não deve ser rejeitado, mas sim ressignificado: como ferramenta de luta, de construção de saberes autônomos e de resistência cultural e política contra todas as formas de dominação.
O livro e o neoliberalismo.
Na conjuntura atual, o neoliberalismo se impõe por todos os meios — inclusive no contexto do terceiro governo Lula (PT), que, ao manter o arcabouço fiscal, sinaliza a continuidade de um projeto que, em nome da responsabilidade econômica, prepara o terreno para ataques aos direitos sociais historicamente conquistados nas áreas da educação e da saúde. A partir do governo, o discurso sobre a importância do livro para a educação é marcado por contradições. Embora se afirme que o livro é “fundamental” para o desenvolvimento intelectual da população, as políticas públicas voltadas ao livro, às bibliotecas e à cadeia editorial como um todo têm sido reiteradamente atravessadas por cortes orçamentários, precarização e desmonte.
Simultaneamente, a extrema-direita, articulada com setores militares e sustentada por uma base social mobilizada, intensifica suas pressões, censuras e perseguições a propostas pedagógicas progressistas. Os livros tornam-se alvos prioritários quando suas temáticas envolvem direitos humanos, lutas de classe, questões raciais e de gênero. Em escala global, obras com esse perfil são banidas de escolas, bibliotecas e demais espaços públicos, reforçando a ofensiva conservadora contra a pluralidade e a crítica social. A extrema-direita fascista carrega consigo um histórico conhecido de perseguição ao pensamento crítico e à produção editorial.
O resultado é que, em ambos os contextos — seja pelo modelo neoliberal do PT e da extrema direita ou pela censura reacionária —, o livro e, sobretudo, os sujeitos que escrevem, publicam, distribuem e leem essas obras críticas, são perseguidos, demitidos, processados e criminalizados que acompanha a disputa pelo sentido da palavra escrita. No entanto, mesmo nos marcos da democracia liberal e do progressismo institucional, observa-se a marginalização dos livros que ousam romper com a normatividade criadas pela própria classe dominante, ou arracadas com muita luta popular dos movimentos sociais organizados.
Nas últimas décadas, instituições privadas, como o Itaú Social, têm realizado diversas ações envolvendo obras da literatura infantil — desde a distribuição de livros, o financiamento de bibliotecas comunitárias e cursos livres de formação para mediação de círculos de leitura, até formações específicas sobre bibliotecas comunitárias.
Segundo o Brasil de Fato, em 2024 o Banco Itaú lucrou R$ 41,8 bilhões. No entanto, ao se pesquisar sobre os fundos investidos pelo banco no Itaú Social, não há informações atualizadas: o dado mais recente é de 2021, quando foram investidos R$ 159 milhões. Esse valor representa cerca de 0,38% do lucro atual — ou seja, quase nada para os padrões do setor bancário.
O livro, nesse contexto, torna-se um instrumento do capital neoliberal. Muitas dessas iniciativas adotam, superficialmente, conceitos importantes das lutas populares e da produção científica — como os debates sobre raça e gênero — e evocam referências como o direito à literatura, de Antonio Candido, intelectual solidário ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Contudo, ao contrário de Candido, que fazia uma crítica estrutural à sociedade de classes e compreendia a literatura como um direito humano com recorte de classe, as instituições privadas não seguem esse princípio.
O que está em curso é a construção de sujeitos neoliberais. As agências utilizam o livro como veículo para introduzir a ideologia capitalista na classe trabalhadora — promovendo valores como a lógica empresarial, a competição e o empreendedorismo como supostas soluções para problemas sociais. Paralelamente, constroem, desde cedo, uma imagem positiva das instituições financeiras, associando os bancos à promoção da leitura infantil e à manutenção de bibliotecas comunitárias.
O papel da militância anarquista.
A militância organizada — e também aqueles que ainda não estão inseridos — convidamos a entrar em contato conosco. Busquem se inserir em movimentos sociais que tenham bibliotecas ou estejam dispostos a abrir espaços para construí-las. É fundamental envolver-se no fazer do livro como uma plataforma da ideologia anarquista, com o propósito de instruir para a revolta e construir sujeitos fundamentados na liberdade e na igualdade.
Defendemos:
A construção de bibliotecas comunitárias como espaço de estímulo à sociabilidade, baseadas na liberdade e na igualdade, somando-se à organização da rua, da praça e do bairro para formar um povo forte e autônomo;
O incentivo à bibliodiversidade, com obras oriundas de diferentes territórios e com recortes de classe, raça, gênero e identidades diversas, nas bibliotecas públicas, universitárias e comunitárias;
A sindicalização das trabalhadoras e dos trabalhadores envolvidos nas diversas etapas do fazer do livro — da produção à circulação;
A difusão de livros anarquistas por diferentes meios: clubes de leitura, grupos de estudos formais e informais, rodas de conversa e feiras populares;
A elaboração de projetos editoriais anarquistas para ampliar vozes e práticas para além do que já existe nas produções editoriais libertárias;
A construção coletiva de um Dia do Livro Anarquista, como marco de propaganda e celebração da produção editorial libertária.
Arte por Clifford Harper:
Referências bibliográficas
BARROS, Douglas Rezende. ttps://blogdaboitempo.com.br/2021/06/16/o-que-e-eurocentrismo/ Acesso 15 de abril de 2025.
MECHOSO, Juan Carlos. A estratégia do especifismo. a-estratc3a9gia-do-especifismo-compressed.pdf (cabanarquista.com.br) Acesso 31 de out de 2024.
MALATESTA, Errico. Ciência e reforma social. https://bibliotecaanarquista.org/library/errico-malatesta-ciencia-e-reforma-social Acesso 14 de abril de 2025.