O REGIME CAIU, A GUERRA CONTINUA: SOBRE A QUEDA DE ASSAD NA SÍRIA
Nota da organização TÊKOŞÎNA ANARŞÎST
Os sonhos revolucionários de milhões de sírios que inundaram as ruas em 2011 finalmente se tornaram realidade: o regime caiu. Após décadas da dinastia Assad, hoje acordamos em uma Síria sem um governo central funcional. O Estado Sírio colapsou.
Nós, como anarquistas e revolucionários, não podemos fazer outra coisa senão celebrar: um tirano a menos no mundo. Um brinde a isso! Mas, após mais de sete anos vivendo a revolução, aprendemos uma lição impopular: a vitória é apenas o primeiro passo para a transformação social que precisamos. Porque cada vitória é simplesmente um passo para a próxima luta.
Felizmente, o Movimento de Libertação Curdo tem décadas de experiência acumulada e está mais do que disposto a compartilhá-la conosco. E não apenas isso: eles também têm 12 anos de lições práticas liderando uma sociedade revolucionária no nordeste da Síria, com a libertação das mulheres, a ecologia social e a confederação de governos locais como bússolas para construir o socialismo libertário. Não sem falhas, não sem erros, mas já é mais do que muitas outras revoluções libertárias jamais alcançaram.
Ao mesmo tempo, os sucessos militares do Hayat Tahrir al-Sham[1] (HTS) contra o regime, bem como seu governo islâmico autoritário em Idlib, abriram espaço para que seu líder influenciasse as manchetes das agências de notícias mundiais. A sociedade da informação do século 21 esquece tão rápido quanto desliza as telas, então talvez precisemos refrescar sua memória. Hoje, quem lembra da libertação de Manbij das garras do Estado Islâmico (ISIS)? Quem fala sobre os jihadistas que sequestraram e traficaram mulheres yazidis de Sengal por todo o mundo salafista? E quem lembra das mulheres que declararam a vitória das SDF[2] sobre Raqqa, outrora a capital do califado?
Para aqueles que esqueceram, lembramos que a YPJ[3] ainda está lutando, liderando a frente da revolução das mulheres em Rojava. Uma frente que está novamente sob ataque por forças a serviço do Estado Turco, reunidas sob o irônico nome de Exército Nacional Sírio (SNA)[4], uma coalizão de gangues criminosas controlada pela Turquia. Hoje, eles ameaçam a cidade multicultural de Manbij, um grande exemplo de pluralismo e governança local integrada ao sistema da Administração Autônoma Democrática do Nordeste da Síria (DAANES)[5].
A revolução de Rojava não é apenas para curdos, mas também para árabes, armênios, assírios, siríacos, turcomenos, circassianos e muitos outros grupos étnicos presentes aqui. As forças árabes do Conselho Militar de Deir Ezzor foram aplaudidas pela população local ao entrarem na cidade de Deir Ezzor, preenchendo o vácuo de segurança deixado pelos soldados do regime em fuga. O sistema confederal do Nordeste da Síria é um modelo testado que pode servir como base para uma Síria revolucionária. Omar Aziz, um proeminente anarquista de Damasco, trabalhou por uma aliança confederal de conselhos locais, ao propor esses espaços como a espinha dorsal da revolução síria. Ele foi preso e morreu nas prisões do regime Assad em fevereiro de 2013. Nós não o esquecemos e valorizamos suas palavras e experiência como anarquista e revolucionário aqui, na Síria.
Todos os sírios revolucionários no exílio — árabes, curdos e muitos outros — carregam a responsabilidade de garantir que sua revolução tenha sucesso. Também anarquistas, comunistas, feministas, ecologistas e outros revolucionários internacionalistas devem sentir-se responsáveis por defendê-la. Temos uma oportunidade maravilhosa de criar um exemplo para movimentos revolucionários em todo o mundo, do Curdistão a Mianmar, de Chiapas à Palestina. Os Estados-nação são a pedra angular da modernidade capitalista, e apenas uma confederação mundial de movimentos revolucionários populares pode desafiá-los. A alternativa capitalista tem sido uma descida ao autoritarismo, à ocupação imperialista e ao ódio fundamentalista. Não vamos deixar isso acontecer.
Rumo a uma nova revolução síria!
Como anarquistas, também devemos oferecer respostas à questão do Estado-nação. Ao mesmo tempo que pedimos o fim dos Estados e das fronteiras, precisamos avançar não apenas com críticas, mas também com propostas e soluções. Devemos fazer isso não apenas na teoria, mas na prática, organizando-nos com comunidades locais e movimentos sociais para construir poder popular.
Forças autoritárias, como o HTS ou a Turquia de Erdogan, sempre usarão a força para impor seu controle em tempos de instabilidade. A única maneira de contrariá-las é com organização popular, uma sociedade civil ética e politicamente forte, construindo a autodefesa do povo e uma cultura revolucionária. Com solidariedade internacional, para desafiar o nacionalismo e o chauvinismo que nos dividem e que, de forma enganosa, servem para legitimar o sistema de Estados-nação da modernidade capitalista. Com governança local e modelos confederados, para desafiar os sistemas centralizados e as fronteiras dos Estados-nação, que só geram opressão e violência contra a diversidade. Com mulheres e organizações queer na linha de frente, para desafiar a opressão patriarcal de onde todos os modelos autoritários se originam.
Desde a Primavera Árabe de 2011, vimos muitas tentativas revolucionárias no Oriente Médio, mas nenhuma delas conseguiu alcançar uma solução libertadora, afundando repetidamente em novas formas tirânicas de opressão. O que fazemos após a queda de um tirano para evitar que outro o substitua? Há uma pequena janela de oportunidade quando um regime colapsa. Um breve tempo revolucionário, onde o povo pode tomar o poder de volta em suas mãos, impedindo que uma nova autoridade centralizada se imponha. Temos que estar prontos para aproveitar essas oportunidades quando elas surgem.
Vamos garantir que a revolução síria, assim como o movimento de libertação curdo que tem liderado uma resistência democrática na região, se torne um exemplo para muitas outras revoluções por vir! Vamos lutar juntos para construir o novo mundo que carregamos em nossos corações!
O que você pode fazer?
- Participe da organização local de solidariedade com Rojava.
- Escreva na mídia, chame a atenção para a crise dos deslocados internos (IDP crisis), além de apresentar uma visão mais precisa sobre todas as forças envolvidas nos combates. Isso é especialmente importante se você já trabalha na mídia e tem acesso a publicações de maior alcance.
- Crie arte e materiais visuais que possam ser divulgados. Tente conectá-los a panfletos, escritos, campanhas de solidariedade, etc.
- Organize e participe de manifestações, faça discursos públicos.
- Prepare campanhas contra as companhias aéreas turcas e pela interdição do espaço aéreo sobre a Síria. No passado, ataques aéreos foram o maior problema para as SDF[2], e, se isso ocorrer novamente, será um fator significativo.
- Doe para a Heyva Sor (Crescente Vermelho Curdo)[7].
- A fronteira de Semalka está aberta para jornalistas. Venha para Rojava!
- Se possível, reúna-se com seus camaradas, amigos ou familiares e realizem os pontos mencionados acima juntos. Forme seus próprios grupos ou junte-se a grupos já existentes.
Centro de mídia da Têkoşîna Anarşîst[6]
7 de dezembro de 2024
Notas da tradutora:
[1] O Hayat Tahrir al-Sham é um grupo armado islâmico, de vertente salafista-sunita, que se originou no território ocupado pelo Estado sírio em meados de 2017.
[2] SDF faz referência às Forças Democráticas Sírias, ou Syrian Democratic Forces no termo usado em inglês.
[3] YPJ faz referência às Unidades de Defesa das Mulheres, ou Yekîneyên Parastina Jin do Kurmanji, no idioma curdo.
[4] A sigla SNA faz referência ao termo usado em inglês: Syrian National Army.
[5] A sigla DAANES faz referência ao termo usado em inglês: Democratic Autonomous Administration of North East Syria.
[6] Têkoşîna Anarşîst significa “Luta Anarquista” ou “Resistência Anarquista” no idioma curdo.
[7] Crescente Vermelho é a contraparte da Cruz Vermelha em países islâmicos e de maioria muçulmana.