[TRADUÇÃO] Carta de Opinião fAu – Junho 2024
O texto a seguir é uma tradução da análise de conjuntura feita pela Federação Anarquista Uruguaia, a fAu, em junho de 2024. Você pode acessar o texto original no site da fAu aqui.
51 ANOS DEPOIS DA GREVE GERAL CONTRA O GOLPE DE ESTADO E CONTRA O AVANÇO REPRESSIVO
A Greve Geral de 1973
Há 51 anos, milhares de fábricas, centros de trabalho, obras em construção, foram ocupadas massivamente por trabalhadores, trabalhadoras, estudantes e pelo conjunto do povo, frente a consumação do Golpe de Estado, que vinha sendo gestado desde 1968, passo a passo, desde os rumores golpistas de 1964 inclusive. Os trabalhadores e trabalhadoras tinham uma clara definição desde a fundação da CNT naquele ano: “se há golpe, há greve”. Foi isso que possibilitou que, nas primeiras horas da fria manhã de 27 de junho, inúmeros lugares de trabalho fossem ocupados, alguns inclusive sem contar com prévia organização sindical.
15 dias de resistência, com fábricas ocupadas em diversas ocasiões, despejos com repressões brutais, decretos de demissões e detenções em massa, listas de perseguição, ilegalidades e fechamento de meios de comunicação. Saudaram à ditadura as câmaras empresariais, a associação de bancos, a Associação e Federação Rural e a imprensa complacente que foi porta-voz oficial dos golpistas durante toda a ditadura.
Logo veio a articulação repressiva na região com a Operação Condor, sob a égide e coordenação dos Estados Unidos. Dezenas de milhões de pessoas desaparecidas, milhares de assassinatos, meninos, meninas e bebês sequestrados. O horror em sua expressão máxima. As prisões e quartéis cheios de companheiros/as presos. Era destruído de forma definitiva o mito da democracia liberal uruguaia, aquele “como o Uruguai não há” e o “país da exceção”. O Uruguai era mais um país no concerto latino-americano, com suas características e história próprias, mas não era exceção no que diz respeito as ditaduras militares regionais orquestradas pelos EUA, sob a política exterior de Henry Kissinger e Richard Nixon.
12 anos de ditadura civil-militar (porque vários civis foram parte importante do elenco ditatorial) moldaram um país com crescente miséria, dívida externa impagável, fechamento de fábricas, saúde e ensino público deteriorados e a instalação paulatina do modelo neoliberal, que começou a se aprofundar nos anos 90.
Hoje: o governo de Lacalle Pou aprofunda o modelo e sai a reprimir Desde a posse de Lacalle Pou, o eixo das medidas do governo esteve centrado na LUC1. Ali se concretizaram as principais reformas neoliberais e repressivas que seriam aplicadas neste período. Deixaram a Previdência Social de fora, para um tratamento a parte e rápido. Mas foi um grande pacote, aberto para negociação com todos os partidos.
A intervenção e repressão por parte da polícia estão na raiz dessa questão, algo observado inclusive nas últimas mobilizações. Caso notório foi a repressão aos trabalhadores da Intergremial Marítima, que foram reprimidos às portas do Ministério do Trabalho, enquanto negociavam uma solução para um longo conflito. Levam seis meses sem trabalhar devido à negativa que veio da Cámara de Armadores Pesqueros sobre poderem sair para pescar. A polícia reprimiu, bateu e feriu com balas de borracha a mais de 20 trabalhadores. A Polícia é parte do aparato armado do Estado, reprimir é sua função.
Os trabalhadores do mar continuam lutando com dignidade. Sustentam o conflito e exigem soluções imediatas para poder levar o pão a suas mesas. Conflito que tem como pano de fundo uma frota pesqueira que necessita de urgente renovação, para que o setor possa seguir operando e trabalhando em condições de segurança e higiene adequadas. As reivindicações são mais do que justas: poder trabalhar – e suspender o lock out patronal –, seguro-desemprego para os trabalhadores, um acordo coletivo com salários dignos, contra a sazonalidade e a concentração de empresas, aposentadoria com bonificação e pelo aumento salarial. Essas reivindicações “justificaram” a repressão policial.
Esta luta continua, já que não foram encontradas até o momento soluções para o conflito. O cerne da questão está na determinação patronal de não poder sair para pescar, com a intenção de derrotar o sindicato. Mas o sindicato não se rende facilmente, os trabalhadores organizados defendem seus interesses com as medidas que entendem serem pertinentes e se mantém firmes na luta.
A repressão aos trabalhadores do mar não é um fato isolado. No 1º de maio, a Polícia tentou reprimir a Coluna Cerro-Teja enquanto marchava para o ato da Convenção de Trabalhadores, tal como faz desde 1983. Foram várias as provocações policiais e deslocaram, inclusive, um carro lança água2 para amedrontar e tentar dispersar a mobilização. Não puderam reprimir, mas foi a primeira intervenção em datas recentes de mobilizações.
Dias antes, reprimiram no bairro Santa Catalina um protesto de vizinhos e vizinhas frente a detenção de dois jovens acusados de um crime, que todo o bairro sabe que não cometeram. Reprimiram com balas de borracha e carros lança água. No dia seguinte, dispersaram com carro lança água e cavalos a centenas de jovens no Novo Centro.
Na sequência, foram realizadas detenções de militantes enquanto colavam adesivos pelo 20 de maio e sobre outras mobilizações. A polícia também montou operações intimidatórias para desalojar escolas ocupadas pelos estudantes.
Recordemos a opressão à mobilização de caminhoneiros na entrada do porto de Montevidéu e à paralização do transporte no Terminal de Tres Cruces. O governo quis instaurar a repressão e um clima policial de patrulhamento mais pesado, mais visível e presente na rua. A pandemia interveio de certa forma em seus planos e não puderam realizá-los completamente, ainda que a presença tenha sido maior, especialmente nas “aglomerações”, durante este período. Mas o certo é que a forte presença policial nas ruas se fez notar desde que o governo de Lacalle Pou assumiu, com a generalização do patrulhamento, algo que o governo anterior fazia saturando certas áreas (as “megaoperações)”.
Agora, a poucos meses das eleições, jogam esta carta repressiva e tentam consolidá-la no seio da dinâmica social. As hipóteses podem ser variadas: mostrar punho firme frente as eleições, reprimir devido as possibilidades de que o governo perca as eleições, pela campanha de coleta de assinaturas para conseguir levar a plebiscito uma reforma constitucional que traz certo perigo ao capital especulativo, ou pelos motivos que fossem. Mas isso pareceria uma política de mais longo prazo e não algo meramente conjuntural, levando em conta também que nenhum partido, nem candidato, manifestou a intenção de revogar a LUC, algo que possibilita a maior instauração desta instituição fétida. Trata-se de algo que tenta instalar a repressão com maior firmeza, como uma variável política, assim como no funcionamento social, nesta nova etapa do sistema capitalista na formação social uruguaia.
Por tudo isso, fica mais do que claro que ninguém do campo popular pode aceitar que o pessoal policial esteja organizado sindicalmente e dentro da Convenção, do PITCNT3. É infame ter os repressores na maior organização social e de classe do país, forjada no calor de duras lutas e polêmicas pela geração de militantes que logo padeceu das consequências do Terrorismo de Estado, e hoje muitos deles continuam desaparecidos. Essa geração de militantes que sofreu a dura repressão policial nas ruas, os teria organizado e acolhido na CNT?
Essa instituição é irreformável. Produz violência e seres violentos com os e as de baixo. É a mesma instituição que assassinou durante o Pachecato4 a Líber Arce, a Susana Pintos, a Heber Nieto (militante da FAU e ROE) e a tantos outros estudantes e trabalhadores. É a mesma instituição que hoje produz muitos dos feminicídios, numa evidente instalação da violência por toda a capilaridade social.
Como se fosse pouco, seu “sindicato” sai a respaldar publicamente a opressão aos trabalhadores do mar, lembremos que seu assessor jurídico foi Andrés Ojeda, hoje candidato a presidente nas internas do Partido Colorado.
Nunca deveriam estar no PITCNT, é hora de expulsá-los.
A situação econômica
Muito se fala dos níveis salariais, de que estariam numa situação similar à de 2019. O governo apresenta isso como uma conquista, mas devemos dizer que é a consumação de um roubo e eles mesmos justificam essa afirmação. O salário não cresceu, se manteve em termos reais. Isso dizem os indicadores globais, mas se estudamos por setores de renda ou cada um dos grupos de conselhos de salários, veremos que há muitos setores de atividade que nem sequer igualam com o salário real de 2019. Mais de 2 bilhões de dólares foram transferidos dos trabalhadores para os patrões nesse período.
Mas há um dado que tem sido pouco usado, que tem sido escondido e que é um indicador importante da economia: o Produto Interno Bruto (PIB). Este tem crescido como nunca, hoje está situado em mais de 77 bilhões de dólares anuais, tão logo tenha se recuperado exponencialmente após sua queda durante a pandemia. Ou seja, os de cima não apenas ficaram com a transferência de riqueza por meio da não recuperação salarial e dos aumentos abaixo da inflação, mas também embolsaram mais de 17 bilhões de dólares nos últimos dois anos. Onde estão esses bilhões?
Estão nas contas bancárias das grandes empresas do país e das multinacionais: agroexportadoras (frigoríficos, produtores de gado, produtores de soja e empresas de armazenamento, agroquímicos, empresas e produtores de arroz, florestais, etc.), bancos, AFAPs5, agências marítimas, empresas de celulose, entre outras.
Entretanto, para os e as de baixo houve cortes em saúde pública, ensino, e não existem políticas sérias de emprego, pelo contrário, grandes quantidades de fontes de trabalho foram fechadas, entre elas importantes empresas. Tampouco há políticas de moradia que atendam às necessidades de um teto digno. Os aluguéis estão nas nuvens, equivalem a um salário e é crescente o número de pessoas em situação de rua. Os abrigos noturnos estão cheios e há inúmeras pessoas que dormem na rua todas as noites.
Tudo isso que mencionamos, e que requer análises mais profundas, é responsabilidade de todos os governos que passaram: em nenhum deles se verificou políticas ativas para atender a esses angustiantes problemas da população. Portanto, falamos de políticas sistêmicas: existe consenso de que essas situações não vão melhorar de maneira substantiva; apenas de maneira meramente paliativa, como um “alívio” a essas situações dramáticas, mas seu aspecto estrutural não é abordado.
Logo, temos um país com crescimento econômico, mas que está concentrado nos setores dominantes, com aumento da pobreza e da marginalização. Um país onde as distâncias sociais são cada vez maiores e não nos referimos somente à disparidade de renda.
Plebiscito Previdência Social
Neste contexto, em outubro será colocado em votação a aprovação ou não de uma reforma constitucional impulsionada pelo movimento sindical, em que nossa militância teve papel essencial desde o início. Nesta reforma, a Previdência Social é defendida como um benefício dos trabalhadores e trabalhadoras, se propõe manter a idade de aposentadoria nos 60 anos, igualar aposentadorias mínimas ao Salário Mínimo Nacional e eliminar as AFAPs.
O grande capital está usando todos os meios para dizer que esta reforma é nociva aos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras, esgrimem uma bateria de “estudos” que afirmam suas declarações. Até a Bolsa de Valores entrou em cena. Todos preocupados em defender as “poupanças” que os trabalhadores e trabalhadoras têm nas AFAPs. O que não dizem é que essas “poupanças” são “desviadas” pelas AFAPs nos investimentos que realizam, que quando o trabalhador se aposenta pela AFAP recebe valores irrisórios (menores que 4 mil pesos em muitos casos) e, portanto, menores que a aposentadoria recebida pelo BPS6, que toda essa massa de “poupanças” representa um terço do PIB do país e não é investida na previdência social, nem em outras atividades benéficas para a população, apenas na especulação que beneficia o grande capital.
Por isso, nesses meses que restam, há tarefa nesta matéria. A proposta do movimento sindical e popular deve triunfar e é tarefa de toda a militância. É a base necessária para continuar reformando a previdência social num sentido popular, aumentando as contribuições patronais e igualando-as às dos trabalhadores e eliminando a Caixa Militar.
Porque isso é o que não dizem as “consultorias” e suas profundas “análises”. Se a Caixa Militar for eliminada com todos os seus privilégios, o BPS deixará de estar “desfinanciado”, como apontam os “analistas” burgueses, e deixaremos de pagar aposentadorias milionárias aos altos comandos militares (o Uruguai tem, além disso, um número desproporcional de oficiais militares para as dimensões de nosso país). Significa varrer uma herança importante da ditadura, é fazer justiça.
Isso sem falar que, daqui em diante, tudo que seria “contribuído” para as AFAP será direcionado ao BPS, um grande impacto que elimina esse “desfinanciamento” do BPS. Por outro lado, assim como estabelece a reforma, os montantes das contas dos trabalhadores nas AFAP não serão tocados, serão passados para um fundo fiduciário que os administrará; o que se elimina são as AFAP e seu lucro.
Nesta luta contra o grande capital, em defesa de aposentadorias dignas, para não trabalhar até a morte, se requer um esforço de todos: trabalhadores, cooperativistas, aposentados, estudantes e desempregados. É necessário frear a espoliação dos de cima. Está claro que isso não se freia só com um plebiscito, mas é um ponto importante nesse momento. Se triunfar, é preciso apoiar o que for decidido ali com povo na rua. E se não for aprovado, a luta continua e será preciso conquistá-lo, como já sabe fazer o movimento popular uruguaio.
Portanto, a única alternativa é a luta popular, na rua e com independência de classe.
Os golpistas de ontem, hoje querem continuar com o roubo. Querem pisar no acelerador para impor suas políticas neoliberais e, por isso, saem a reprimir. Lamentavelmente avançaram bastante nesse período. É hora de puxar o freio e esse freio se puxa lutando. É hora de que nós, os de baixo, retomemos as ruas e comecemos a discutir como nos aprofundamos e nos lançamos pelo que é nosso, pelo que nos pertence.
Por isto, passados 51 anos desde que as câmaras empresariais e os EUA impuseram uma feroz ditadura militar em nosso país, a memória é necessária, assim como a ação concreta para derrotar os de cima.
Por todos os nossos companheiros derrubados, por todos os nossos companheiros desaparecidos, por Gerardo Gatti, Elena Quinteros, León Duarte, Alberto “Pocho” Mechoso, Telba Juárez, Eduardo Chizzola, Adalberto “Plomito” Soba, Victoria Grisonas, Roger Julien e tantos outros, seguimos de pé, em luta por uma sociedade diferente.
NEM ESQUECIMENTO, NEM PERDÃO!
A FORTALECER O MOVIMENTO POPULAR!
¡ARRIBA LOS Y LAS QUE LUCHAN!
FEDERAÇÃO ANARQUISTA URUGUAIA
1 Nota da tradutora: A sigla LUC se refere à Ley de Urgente Consideración, uma lei introduzida no início do governo de Lacalle Pou (2022), que promoveu mudanças neoliberais em diversas áreas, como educação, economia, segurança pública, questões trabalhistas e outras.
2 Nota da tradutora: no original, a expressão carro lanza agua se refere aos carros da polícia equipados com canhões e/ou jatos de água.
3 Nota da tradutora: PITNCT se refere no original à Plenario Intersindical de Trabajadores y Convención Nacional de Trabajadores, ou Plenária Intersindical de Trabalhadores e Convenção Nacional de Trabalhadores no português.
4 Nota da tradutora: Pachecato se refere ao período em que Jorge Pacheco esteve no poder (entre 1967 e 1972) e aplicou uma série de medidas de segurança, mas também em outras áreas, para a repressão de estudantes e trabalhadores.
5 Nota da tradutora: a sigla AFAP se refere no original às Administradoras de Fondos de Ahorro Previsional, ou Administradoras de Fundos de Poupança Previdenciária, no português.
6 Nota da tradutora: a sigla BPS se refere no original ao Banco de Previsión Social, ou Banco de Previdência Social no português.