FAG 25 anos: nutrir e fortalecer nossas convicções
Saudações a todos os povos do mundo,
A Federação Anarquista Gaúcha chega na marca de 25 anos de punho erguido e bandeiras em riste, com todos os nossos corações, nossos corpos e nossas vidas dedicados à mais simples e mais justa de todas as causas, à demanda tão urgente quanto necessária, tão impossível quanto inevitável: um mundo de socialismo e liberdade feito pelas mãos de todos e todas os oprimidos.
Na ocasião do nosso aniversário de 10 anos, dissemos que pobre vive de teimoso. E foi com muita teimosia, com muita convicção e com a certeza de que o caminho é duro mas cheio de potências, que caminhamos até aqui. Semeando indignação e rebeldia, organizando as vontades e os desejos de um outro mundo e colhendo avanços e aprendizados que marcam nossa história.
A história da Federação Anarquista Gaúcha, essa ferramenta que articula sonhos, firmezas e trabalho duro e que agora celebramos em mais um novembro é, sem dúvida, parte da história intensa e viva da nossa ideologia em todos os cantos do mundo e da brava história dos povos latinoamericanos em todos os tempos duros de resistência. Foi com a bandeira rubronegra que lutaram os povos do mundo, em especial os povos do sul do mundo, as exploradas e explorados em todos os cantos, e cujas lutas não apenas nos inspiram e nos dão ânimo, mas constituem fundamentalmente a história da qual fazemos parte.
Entendemos desde o princípio que a América Latina é uma terra de guerreiras e guerreiros, cujas vidas foram dedicadas à resistência e cujos corpos e as histórias foram sistematicamente atacados e apagados. Desde as peleias contra a invasão colonial até a dura resistência contra farsas judiciais e perseguições policiais na luta contra sistemáticos golpes dos de cima, os povos da América nunca tiveram a marca da submissão ou da aceitação pacífica, pois sempre soubemos que viver, nessas terras, significa viver em luta.
As flechadas e as batalhas dos povos originários em defesa ante a invasão e exploração brancas marcam a pedra fundamental de nossa história rebelde. Os povos escravizados, com toda a sua diversidade e potência cultural diante do mais brutal processo de terror de Estado que o mundo já viu, ousaram criar sociedades libertárias, autogeridas e sustentáveis, um refúgio para pretos, indígenas e brancos pobres de norte a sul do país em cada território de quilombo – a luta do povo escravizado é a marca de um povo que jamais se curvou, mesmo nas piores condições.
Em exemplos como o levante dos Malês e a campanha dos Inconfidentes, a memória nos lembra do pavor que o poder constituído sente diante de gente que batalha por uma outra vida. Em momentos como a guerra dos Farrapos, demos ênfase à lição de que não há qualquer esperança nas batalhas que travam os de cima e que o povo só tem ao povo como aliado. O Estado colonial que a Europa criou sobre cadáveres das terras indígenas e que hoje chamamos de Brasil jamais foi um instrumento de libertação das oprimidas e, pelo contrário, em casos como Contestado e Canudos, o Brasil demonstrou todo o empenho repressor e sanguinário que reserva ao povo ingovernável que ousou sonhar com outro mundo.
Diante do surgimento do proletariado urbano e de toda a miséria, a fome e a superexploração das cidades, não houve um minuto de folga ou desesperança: nas fábricas e nas ruas, sempre com a bandeira vermelha e preta tremulando em seus braços, os e as oprimidas fizeram sabotagens e rebeliões, marchas, piquetes, barricadas e imensas greves gerais que arrancaram do Estado burguês direitos sociais que ainda hoje peleamos para manter, enquanto fundavam ateneus e escolas, centros de cultura e jornais, espaços comunitários e todo um conjunto de crítica e ação contra o sexismo, o racismo e o capital.
Quando a farsa da democracia deu lugar ao mais aberto regime de terror, tortura e violência, as oprimidas e oprimidos deste continente combateram com as armas que tinham à disposição. Guerrilhas, sequestros, assaltos, marchas, greves e peleias firmes para derrubar um a um todos os ditadores desse continente, mesmo abaixo de censura, exílio, desmonte de sindicatos e associações e uma perseguição sem igual aos corpos rebeldes.
Nos entendemos como latinoamericanos, parte dessa história e responsáveis por fazer memória e fazer justiça a cada trabalhador e a cada trabalhadora que tombou em pé nos 500 anos de exploração e violência que marcam a América.
Nos entendemos como parte da rica e combativa história do socialismo, esse socialismo que não aceita os instrumentos do opressor como ferramenta de libertação, que não tem vocação pra partido único ou pra classe dirigente, que não quer que representantes iluminados tomem o poder do Estado nacional que a Europa inventou, mas que quer e se soma na luta pra que as classes oprimidas do mundo derrubem de uma vez por todas o capitalismo e todas as suas instituições de dominação e terror, a começar pelo Estado e seus aparatos de violência.
Nossa história começa com aqueles já no início do capitalismo percebiam que a propriedade privada e o Estado eram a barbárie; e contra esta barbárie propunham a propriedade coletiva dos meios de produção, organizações autogeridas, federalismo, democracia direta como meio de decisão política e o fim de qualquer dominação de uma classe pela outra.
Nossa história já nasce em oposição não somente à essa barbárie liberal, mas também em oposição sincera a qualquer socialismo que falasse sobre os problemas do mundo desde o lugar sagrado da vanguarda, que se enganasse vendo o Estado como um potencial instrumento de libertação ou que depositasse no partido (e não no povo auto-organizado) o papel central na luta.
“A libertação das trabalhadoras será obra das próprias trabalhadoras”, e foi com esse princípio gravado em nossa ética que as anarquistas enfrentaram o Estado e o capital, quase sempre traídas por outras matrizes socialistas, e sempre entendendo que “só se alcança fins libertários com meios libertários”, forjando em cada batalha e em cada organização sempre um protótipo da sociedade que queremos construir.
Foi assim na comuna de Paris, quando o povo, rebelado, instaurou no centro do capitalismo colonial um território sem Estado e sem patrão. Foi assim na Rússia quando o socialismo autoritário traiu o povo trabalhador e centralizou o poder; foi assim na Ucrânia quando milhões de camponesas ousaram construir uma terra autogovernada em resistência aos exércitos ocidentais e ao exército bolchevique.
Foi com os princípios que constituem o anarquismo que lutaram, sonharam e conquistaram vitórias também os povos do México, em 1910, da Manchúria em 1929, da Espanha em 1936… Todas experiências que contam a história dos acertos e dos erros do Anarquismo, e cuja memória nos brinda com lições importantes para o nosso aqui e agora.
Diante do triunfo neoliberal que, em tese, encerrou a guerra fria; dos conchavos e acertos das elites que fizeram a transição das ditaduras aos Estados democráticos burgueses liberais na América Latina, um novo ciclo imprevisível, instável e intensamente acirrado de lutas se deu no palco das nossas terras.
Com os ares inspiradores que vinham de Chiapas, levando no peito a história quase inacreditável da permanência e da resistência heróica de nossas hermanas do lado dali da fronteira, nascemos. Em novembro de 1995, no coração de Porto Alegre, a Federação Anarquista Gaúcha foi fundada com uma simples convicção: de que a transformação da dura realidade que nos assola precisa ser e será uma obra coletiva dos e das oprimidas de todo o mundo; e um simples, ousado e determinado objetivo: espalhar a semente desta convicção para todos os cantos do país e construir coletivamente um anarquismo organizado, combativo, classista, com a cara do nosso povo e radicalmente revolucionário.
Nos colocamos humildemente como mais um grãozinho de areia em toda essa epopeia de resistência que marca a vida dos povos da América e nos entendemos como a continuidade das lutas, das organizações, dos anseios e dos sonhos que colorem a história do Anarquismo no mundo.
Nascemos durante o mais feroz neoliberalismo no Brasil e nos somamos ao conjunto das classes oprimidas em resistência contra o desmonte das nossas conquistas. Juntamos as nossas vozes às de todos os povos do planeta, em especial os que vivem e sofrem conosco no sul do mundo, denunciando que a globalização não passava da expansão do poder dos mercados capitalistas para todos os cantos do mundo.
Denunciamos e combatemos a vergonhosa celebração dos 500 anos de “descobrimento” e colocamos nosso corpo junto de coletivos, organizações, lutadoras e lutadores para afirmar que, sim, outro mundo é possível, mas ele deve ser construído pela auto-organização dos povos, pelo fortalecimento do poder popular e lutando contra as instituições do Estado sem nenhuma esperança nas vias democráticas burguesas e eleitorais. Como anarquistas, mas, principalmente, como parte do povo dominado desse país, denunciamos que a aliança dos partidos de esquerda com o latifúndio, o setor financeiro e os partidos da ordem seriam uma armadilha de desmobilização e aparelhamento dos organismos do movimento popular e que qualquer conquista sob a conciliação de classes era uma conquista facilmente destrutível.
Diante das sucessivas desigualdades no acesso às cidades, forjamos alianças pra resistir aos megaeventos e seus desmandos, às desapropriações e despejos, aos aumentos nos preços do transporte e às diminuições na qualidade de vida e escancaramos o limite da farsa da conciliação de classes.
Seguimos lutando quando os de cima não se entenderam mais e deram um golpe institucional descartando a conciliação de classes em favor de alguém que fosse mais de seu agrado; reinvidicamos nossa história antifascista e lutamos por democracia direta, contra o avanço liberal-conservador pelas vias eleitorais.
Nesses 25 anos de existência, nós, da Federação Anarquista Gaúcha, dedicamos todo nosso tempo e o melhor das nossas forças diante de cada ataque, cada retirada de direitos, cada ameaça à vida das de baixo; emprestamos nossos métodos de luta e organização a todas as causas do povo; denunciamos e enfrentamos a inoperância da esquerda apaixonada pelo Estado e da esquerda “revolucionária” apaixonada pelo Partido; estivemos lado a lado em cada greve, em cada ocupação, em cada rua tomada pela revolta popular, em cada assembleia, em cada tomada do latifúndio, em cada retomada indígena, em cada momento na luta por resistência e por outro mundo, entendendo que não há tarefa maior ou menor e que não há luta mais ou menos importante.
Choramos juntas cada uma das nossas mortas, das gentes do povo cujas vidas foram dilaceradas pela violência do Estado; estendemos nosso ombro e nossos braços em solidariedade a cada novo ataque, seja ele contra quem fosse; enfrentamos com bravura, desde o primeiro dia, a perseguição policial, as farsas judiciais e a repressão física a nossos espaços, a nossas companheiras e a nossas ideias.
Nascemos para colocar nosso trabalho militante, nosso jeito de lutar e nossa ética socialista junto das forças que desejam pôr fim aos conchavos, conciliações ou reuniões de gabinete. Nascemos para que nosso fazer ajude a botar medo nos de cima, para que nossas bandeiras rubronegras tremulando em cada canto do país tirem o sono de quem nos rouba o futuro.
Nesses 25 anos, não fizemos isso tudo por um romantismo revolucionário ou pelo apego à identidade de militante, não foi nunca por cargos ou por poderes – fizemos ontem e fazemos hoje em nome das nossas convicções e da certeza de que só o povo salva o povo e de que é impossível transformar o mundo por outra vida que não o fortalecimento do poder popular.
A marca dos nossos 25 anos são os 25 anos de retomada do anarquismo que não se presta a caricaturas, que não hesita em se fazer ferramenta de luta das oprimidas e oprimidos. São, também, os 25 anos do CABN, do CALC, do COMPA, da OASL, da FARJ, do FAE, da FARPA, da FACA, da ORL, da Rusga Libertária, da Maria Ieda; são 25 anos de construção do anarquismo de matriz especifista, do fórum do anarquismo organizado e da Coordenação Anarquista Brasileira, essa nossa firme e humilde tentativa de resgatar o vetor social do anarquismo e recolocá-lo no lugar de protagonista das lutas do nosso povo.
Essa história não teria sido possível sem a dedicação intensa, sem a doação ferrenha de cada companheiro e cada companheira que escolheu dedicar a sua vida à causa da libertação popular. Nascemos entre as oprimidas para ser um instrumento político que ajude na difícil tarefa de combater as durezas deste mundo sem nunca recorrer às armas do inimigo e forjando, na própria luta, a ética, o discurso e o jeito de existir que desejamos imprimir na sociedade futura.
Certamente erramos muito porque nunca cessamos de tentar e, sem dúvida, estes 25 anos são apenas o engatinhar nesse duro processo que nos cabe trilhar. Em mais este novembro, desejamos lembrar com carinho de cada companheira e cada companheiro que construiu e constrói junto essa história. Queremos dedicar às nossas mártires toda nossa vida de luta e queremos firmar entre nós o compromisso de, fazendo memória dos tempos que passaram, seguir combativamente, sem desvios, construindo essa história por mais 25 anos e além.
Com solidariedade intransigente como valor, com uma ética socialista e libertária como farol, com a autogestão, o federalismo, a independência e a radicalidade como princípios e com a ruptura revolucionária e a construção de um mundo socialista como objetivo, trilhamos os primeiros 25 anos de combates, aprendizados, construções, erros, amizades, afetos, memórias, frutos, amigos e amigas, medos e falhas.
Nesse aniversário, estranhamente distantes, mas com nossos corações batendo juntos no mesmo ritmo, celebramos a Federação Anarquista Gaúcha, a Coordenação Anarquista Brasileira, a Coordenação Anarquista Latino Americana, enfim, o povo da América Latina, os anseios que marcam o nosso fazer e, sobretudo, as convicções que nos constituem.
Passam os anos, mudam as conjunturas, trocam os nomes e os algozes, aprendemos, melhoramos e mudamos, mas seguimos com nossas convicções em pé, as mesmas que, há um quarto de século, levaram companheiras e companheiros a criar uma organização especificamente anarquista na amarga terra do Rio Grande.
Faremos brotar desse solo os frutos de um outro amanhã.
É por essas convicções, porque os problemas do mundo têm pressa, porque sabemos que os tempos são duros e porque acreditamos na força do poder popular, no socialismo e na liberdade, com o sangue e a bravura do povo gaúcho, com a história latinoamericana pulsando em nosso peito e com a bandeira rubro negra erguida em nossos braços, seguiremos.
FEDERAÇÃO ANARQUISTA GAÚCHA: 25 ANOS NUTRIR E FORTALECER NOSSAS CONVICÇÕES
VIVA A FAG! VIVA O ANARQUISMO ORGANIZADO!
PELO SOCIALISMO E PELA LIBERDADE!
Rio Grande do Sul, novembro de 2020