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PENSAMENTO E BATALHA | Fascismo e Democracia Burguesa

Realizamos uma breve seleção de trechos do nosso velho militante Errico Malatesta sobre o Fascismo, que nos ajudam a pensar teórica e historicamente o tema e a tentar entender o momento atual em que reaparecem e se consolidam ameaças autoritárias, propostas fascistas e de extrema-direita.

Os subtítulos em negrito e em maiúsculas foram escritos por nós da CAB, seguidos dos trechos por nós selecionados.

Quem foi Errico Malatesta?

Um aguerrido militante anarquista, viveu no mundo físico entre os anos de 1853 a 1932, mas permanece vivo até hoje em nossas memórias pela sua dedicação ao anarquismo militante e revolucionário. Participando desde sua adolescência de atividades construídas pela classe trabalhadora, como a Primeira Internacional (AIT) em 1871. Malatesta colaborou na construção de grupos revolucionários na América do Sul, Estados Unidos, Egito, Romênia, Espanha e Itália.

Escritor e fundador de periódicos anarquista, como: Umanità Nova, Pensiero e Volontà, L’Associazione, La Questione Sociale e La Révolte.Defensor da existência de uma organização política anarquista, onde essa – pela prática de seus militantes ombro a ombro com as/os de baixo –possuí como linha finalista a revolução social protagonizada pelo povo organizado.

Foi banido de vários países por onde passou buscando organizar e conscientizar os trabalhadores da importância da luta.

Coordenação Anarquista Brasileira

O FASCISMO É UM MOVIMENTO REACIONÁRIO QUE SE APOIA NO SISTEMA.

[Seria] ridículo pedir ao Estado a supressão do fascismo, quando é notório que o fascismo […] não teria podido nascer e viver um dia sem a proteção e a ajuda da polícia e que não será suprimido, voluntariamente, pelo governo a não ser quando se sentir suficientemente forte para proceder de outro modo.

[O fascismo é a] milícia irregular da burguesia e do Estado que, em determinado momento, fez, faz ou fará aquilo que o governo não pode fazer sem renegar a lei e revelar de modo demasiado aberto e perigoso sua natureza. Ninguém colocará em dúvida o nosso vivo desejo de ver debelado o fascismo e a nossa vontade firme de concorrer, como podemos, para debelá-lo. Mas nós não queremos abater o fascismo para substituí-lo por qualquer coisa de pior, e pior que o fascismo seria a consolidação do Estado. Os fascistas agridem, incendeiam, assassinam, violam toda liberdade, esmagam da maneira mais ultrajante a dignidade dos trabalhadores. Mas, francamente, todo o mal que o fascismo fez nesses últimos dois anos, e que fará no tempo que os trabalhadores o deixarem existir, é comparável ao mal que o Estado fez, tranquilamente, normalmente, durante infinitos anos, e que faz e fará até quando continuar existindo?

«Il fascismo e la legalità» [14/03/1922]

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O ESTADO LIBERAL BURGUÊS CONFORMA PRÁTICAS INSTITUCIONAIS ONDE FUNCIONA UM NÍVEL DE VIOLÊNCIA PERMANENTE E RACIONALIZADA.

Sei, todos os anarquistas sabem, que a liberdade e as garantias constitucionais valem pouquíssimo para a maioria e quase nada para os pobres. Mas não gostaria, por isso, me tornar defensor do governo absoluto. Conheço, por exemplo, os erros que se cometem nas delegacias de polícia e nas casernas da Itália; conheço toda infâmia dos métodos vigentes da Instrutoria Penal, mas nem por isso gostaria do estabelecimento oficial da tortura e das execuções sem processo.

«Unanarchicoalle prese con se stesso. Intornoall’intervistacon Herman Sandomirsky» [04/05/1922]

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EM POLÍTICA A SIMPLIFICAÇÃO É LETAL. ANALISAR UMA SITUAÇÃO CONCRETAE DEFINIR O QUE PODEMOS E DEVEMOS FAZER SEM RENUNCIAR A MUDANÇA QUE DESEJAMOS.

Sustentar […] que todos os governos se equivalem é um absurdo, no qual aqueles mesmos que o afirmam não acreditam.

Nada é perfeitamente equivalente, tanto na sociedade quanto na natureza. Não existem somente diferenças entre tal ou qual forma de governo, tal ou qual ministério, mas também entre este ou aquele outro carrasco; e estas diferenças tem sua respectiva influência, boa ou má, sobre a vida atual dos indivíduos e da sociedade, e também sobre o curso dos acontecimentos futuros. Qual é esta influência? É difícil e frequentemente impossível prevê-la, e isso varia segundo uma infinidade de circunstâncias: um governo de grosseiros ignorantes e nocivos às vezes pode ser útil na medida em que provoca a reação das forças populares, como pode ser extremamente nefasto se consegue sufocar e suprimir os elementos capazes de derrubá-lo.

Para nós – e isso deveria ser válido para todos os partidos que se dizem revolucionários – o que é mais importante não é o que um governo pode ser ou pode fazer: é o que nós devemos fazer. […] Queremos derrubar todo regime social em vigor porque ele está baseado na divisão de classes que, sempre reconduz à dominação de uns pelos outros. Não aspiramos a uma escravidão suavizada em que os escravos seriam alimentados e tratados humanamente […]

Não poderíamos favorecer a ascensão ao poder de um governo mais reacionário, na esperança, que poderia revelar-se vã, de tornar mais próximo nosso objetivo revolucionário. Assim como não poderíamos desejar uma guerra ou aplaudir ações policiais mais perversas sob pretexto de que as vezes a guerra, sobretudo se está perdida, ou ainda uma violência policial mais brutal do que de costume, pode dar origem a um movimento que seja a gota d’água que faz transbordar.  Além do mais, não poderíamos contribuir para consolidar o regime tentando melhorá-lo pelos meios que o próprio regime nos oferece.

«Il governo migliore» [05/07/1922]

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O FRACASSO DA DEMOCRACIA BURGUESA FAZ TERRENO PRO FASCISMO IMPOR SUA DISCIPLINA AUTORITÁRIA E LIQUIDAR O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES.

Por conclusão de uma longa série de delitos, o fascismo finalmente tomou posse do governo.

E Mussolini, o Duce, só para se distinguir, começou a tratar os deputados como um patrão insolente trataria servos estúpidos e preguiçosos.

O parlamento, aquele que deveria ser «o palácio da liberdade», deu a sua medida.

Isto nos deixa perfeitamente indiferentes. Entre um fanfarrão que calunia e ameaça, porque se sente seguro, e uma junta de covardes que parecem deliciar-se na sua degradação, nós não temos que escolher. Constatamos apenas – e não sem vergonha – que espécie de gente é a que nos domina e do jugo de quem não conseguimos escapar.

Mas qual é o significado, qual o alcance, qual o resultado provável deste novo modo de chegar ao poder em nome e ao serviço do rei, violando a constituição que o rei havia jurado respeitar e defender?

[…] É sempre a velha história do bandido que se torna polícia!

A burguesia, ameaçada pela maré proletária que subia, incapaz de resolver os problemas tornados urgentes pela guerra, impotente para se defender com os métodos tradicionais da repressão legal, estava perdida e teria saudado com alegria qualquer militar que fosse declarado ditador e tivesse afogado em sangue qualquer tentativa de reparação. Mas naqueles momentos, no imediato pós-guerra, a coisa era demasiado perigosa, e podia precipitar a revolução em vez de abate-la. De qualquer modo, o general salvador não apareceu, ou só apareceu dele a paródia. Ao invés disso apareceram aventureiros que, não tendo achado nos partidos subversivos campo suficiente para as suas ambições e os seus desejos, pensaram em especular sobre o medo da burguesia oferecendo, mediante compensação adequada, o socorro de forças irregulares que, seguras da impunidade, podiam entregar-se a todos os excessos contra os trabalhadores sem comprometer diretamente a responsabilidade dos presumíveis beneficiários das violências cometidas. E a burguesia aceita, solicita e paga o seu concurso: o governo oficial, ou pelo menos uma parte dos agentes do governo, pensou em fornecer as armas, ajudá-los quando num ataque estivessem se saindo mal, assegurar a impunidade a eles e desarmar previamente os que deviam ser atacados.

Os trabalhadores não souberam opor a violência à violência porque tinham sido educados para acreditar na lei, ainda quando toda a ilusão se tornava impossível e os incêndios e os assassinatos se multiplicavam sob o olhar benévolo das autoridades, e porque os homens em quem tinham confiança predicaram a paciência, a calma, a beleza e a sabedoria de se deixar bater “heroicamente” sem resistir — e por isso foram vencidos e lesados nos haveres, nas pessoas, na dignidade, nos afetos mais sagrados.

Talvez, quando todas as instituições operárias sejam destruídas, as organizações dissolvidas, os homens mais odiados e considerados mais perigosos mortos, aprisionados ou de qualquer modo reduzidos à impotência, a burguesia e o governo pretendam pôr um fim a nova guarda pretoriana, que agora aspirava a se tornar os donos de quem tinham servido. Mas já é demasiado tarde. Os fascistas agora são os mais fortes e querem ser pagos pelos seus serviços. E a burguesia pagará, por suposto, buscará pagar montada sobre os ombros do proletariado.

Em conclusão, miséria aumentada, opressão aumentada.

[…] temos que continuar a nossa batalha..estar preparados para todos os desenganos, para todas as dores, para todos os sacrifícios.

[…] O ascenso do fascismo deve servir de lição aos socialistas legalistas, os quais acreditavam, e acreditam ainda, que podemos derrotar a burguesia pelos votos da metade mais um dos eleitores, e não quiseram acreditar quando dissemos que se alguma vez alcançassem a maioria no parlamento e quisessem — só por hipótese absurda — realizar o socialismo a partir do parlamento, seriam expulsos com um pontapé no traseiro!

«Mussolini al potere» Umanità Novaaño III, n° 195, [25/11/1922]

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O FASCISMO É UM MÉTODO POR EXTREMA-DIREITA DE GOVERNAR O CAPITALISMO COM A DISPENSA DAS TÉCNICAS POLÍTICAS DO PACTO E DA COLABORAÇÃO DE CLASSES.

Mussolini segue no trono e o parlamento se arrasta mais que nunca aos seus pés. Os plenos poderes foram concedidos com a pressa de servos que competem na baixaria. […]

Os socialistas não entenderam que não podem se manter dignamente em uma assembléia que funciona sobre o terror do porrete, ou da dissolução, e onde a oposição só pode ser uma farsa.

A ditadura triunfa: ditadura de aventureiros sem escrúpulos e sem ideais, que chegou no poder e permanece aí pela desorientação das massas proletárias e pela ansiosa avareza da classe burguesa em busca de um salvador. Mas todos sentem que a situação é tal que não pode durar, e os conservadores mais iluminados, enquanto fazem as cortesias necessárias ao patrão do momento e enganam com cada palavra o pavor que lhes domina, cobram a restauração do «Estado liberal», ou seja, voltar as mentiras constitucionais.

[…] O que querem é um regime, qualquer regime considerado constitucional, que possa fazer o povo acreditar que é livre, e que assegure assim aos proprietários e aos governantes o tranquilo gozo de seus privilégios.

O método com que Mussolini chegou ao poder não permite engano; e é isto o que atormenta a cândida alma dos conservadores.

Mussolini, se puder consolidar seu poder, fará nem mais nem menos o que faria qualquer outro ministro: servirá aos interesses da classe privilegiada… e cobrará por seus serviços. Mas não enganará ninguém com isso de que chegou ao governo pela vontade do povo. Sua tirania é muito recente para poder esconder sua origem: talvez por isto sua turva consciência lhe aconselha apelar a Deus! 

Para nós a única mudança importante é esta: Fomos hostis ao governo porque o governo não é outra coisa que o defensor armado de todas as injustiças sociais, o criador de novas injustiças, o inimigo da liberdade, o obstáculo material sobre o caminho da civilidade. E fomos hostis ao fascismo porque é um movimento que pretende defender os privilégios burgueses, impedir o ascenso proletário, sufocar toda aspiração a uma sociedade mais justa e mais livre, e que se serviu de meios brutais, ferozes e canalhas para alcançar seus objetivos.

Agora governo e fascismo se tornaram a mesma coisa, e se conformam do mesmo pessoal […]

«La situazione», enUmanità Nova, año III, n° 196, Roma [02/12/1922]

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É NECESSÁRIO ROMPER A MÁQUINA DE SUBJETIVAÇÃO FASCISTA SOBRE O CAMPO DE VIDA E EXPERIÊNCIA DAS MASSAS OPRIMIDAS

A força material pode prevalecer sobre a força moral, também pode destruir à mais elegante civilização se esta não sabe se defender com meios adequados contra os retornos ofensivos da barbárie. Toda besta feroz pode devorar um cavalheiro, também um gênio, um Galileu ou um Leonardo, se este é tão ingênuo a ponto de crer que pode frear à besta lhe mostrando uma obra de arte ou lhe anunciando uma descoberta científica.

Mas a brutalidade dificilmente triunfa, e em todos os casos seus êxitos não foram nunca gerais e duradouros, se não consegue obter certo consentimento moral, se os homens civis a reconhecem pelo que é, e se, além disso impotentes em a desvelar a evitam como uma coisa imunda e repugnante. O fascismo que compreendia em si toda a reação e afirma na vida toda a ferocidade atávica adormecida, venceu porque teve o apoio financeiro da grande burguesia e a ajuda material de vários governos que quiseram servir contra a premente ameaça proletária; venceu porque encontrou contra ele uma massa cansada, desenganada e que se tornou covarde por uma propaganda parlamentarista de cinquenta anos; mas sobretudo venceu porque sua violência e seus crimes provocaram o ódio e a vingança dos ofendidos, mas não despertou a desaprovação, a indignação geral, o horror moral que nos parece que deveria nascer espontaneamente em cada alma gentil. E lamentavelmente estas não poderão se impor materialmente se antes não houver uma revolta moral.

Digamos francamente, por mais doloroso que seja constatá-lo. Fascistas também existem fora do partido fascista, existem em todas as classes e em todos os partidos: tem gente de todo o mundo que, não sendo fascistas, inclusive sendo antifascistas, têm a alma fascista, o mesmo desejo de abuso que distingue os fascistas.

«Perchéil fascismo vinse», em Libero Accordo [28/08/1923]

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OS DIREITOS E LIBERDADES POPULARES NÃO PODEM SER CONFUNDIDOS COM AS NORMAS E INSTITUIÇÕES QUE SE FORMAM PARA GOVERNÁ-LAS.

[…] os governos ditatoriais […] estão fazendo da já exaurida “democracia” uma espécie de nova virgem. Por isso vemos velhos defensores do governo, habituados a todas as más artes da política, responsáveis por repressões e por massacres contra o povo trabalhador, fingir serem […] homens de

progresso, procurando assegurar o próximo futuro em nome da ideia liberal. E, dada a situação, poderão até mesmo conseguir.

[…] A pior das democracias é sempre preferível, exceto do ponto de vista educativo, à melhor das ditaduras. Claro, a democracia, o assim chamado governo do povo é uma mentira, mas a mentira sempre compromete um pouco o mentiroso, limitando seu arbítrio; claro, o “povo soberano” é um soberano de comédia, um escravo com coroa e cetro de papel, mas o fato de se crer livre, mesmo sem sê-lo, vale sempre mais que saber-se escravo e aceitar a escravidão como coisa justa e inevitável.

A democracia […] é, na realidade oligarquia; isto é, o governo dos poucos para beneficio de uma classe privilegiada. Mas ainda podemos combate-la em nome da liberdade e da igualdade, ao contrário de quem a substituiu ou quer substituí-la por algo pior.

Não somos democratas, pois, entre outras razões, a democracia cedo ou tarde conduz à guerra e a ditadura. Assim como não somos defensores das ditaduras, entre outras coisas, porque a ditadura desperta um desejo pela democracia, provoca um retorno à democracia, e por sua vez tende a perpetuar um círculo vicioso em que a sociedade oscila entre a tirania aberta e brutal, e uma liberdade falsa e tramposa.

Se tomamos em consideração o modo em que se fazem as eleições, como se conforman os partidos políticos e os grupos parlamentares e como fabricam as leis, como são votadas e aplicadas, é fácil compreender o que já foi comprovado pela experiência histórica universal: inclusive na mais democrática das democracias é sempre uma pequena minoria a que governa e impõe sua vontade e seus interesses pela força.

«Democrazia e anarchia» [15/03/1924]

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FASCISMO NÃO SE DISCUTE. SE COMBATE!

[…] Toda hipocrisia, toda ilusão foi banida: o bom fascista agride, incendeia, extorque, assassina abertamente e com orgulho, é órgão sustentado pelo governo. Não existe mais equívoco. Entende

-se agora que violência é autoridade, é governo, é tirania e que é coisa puramente acidental o fato

de que o violento é vez ou outra amigo ou inimigo do policial, porque no fundo a moral dos dois é a mesma. E hoje acontece, com efeito, que os violentos, ainda não sendo fascistas, quando cometem uma prepotência, orgulham-se de agir fascistamente.

«Opinionepopolare e delinquenza. Uneffetomoralizzatoredel fascismo» [15/08/1924]

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