Diante da pandemia capitalista, solidariedade entre os povos
Análise de conjuntura. Abril de 2020
O ano de 2020 começou com algumas mudanças na região, mas sobretudo com a continuidade da imensa mobilização do povo chileno, essa revolta popular que dura já muito mais do que cem dias e que mudou a situação social e política daquele país, mas também da região. Ela abre um novo cenário e se inscreve, como dizíamos em análises anteriores, na onda de mobilizações que os povos latino-americanos vêm realizando (Haiti, Equador e em outros países com menor intensidade). São tempos de povo na rua, são tempos de luta.
Ao mesmo tempo, começa no mundo uma crise econômica que se aprofunda com o coronavírus e seu impacto nos mercados internacionais. A questão do petróleo e seus efeitos nas economias periféricas da América Latina também podem impactar no custo de vida e na legitimidade da tecnocracia ultraliberal que continua fazendo parte dessa nova fase no nosso continente.
Mas a pandemia do coronavírus traz também uma série de mudanças nessa etapa, que é difícil e prematuro avaliar seus efeitos. No entanto, seu impacto nos obriga a falar de uma situação nova, uma etapa global que está mudando com uma política de controle de grandes populações e aumento de medidas repressivas, em que se tornam evidentes, além do mais, os estragos ocasionados por mais de três décadas de neoliberalismo com o desmantelamento da saúde pública e da previdência social.
Vamos dividir essa análise de conjuntura em duas seções: a primeira abordando a mobilização no Chile e as mudanças políticas e sociais no continente, e a segunda com uma análise inicial acerca da nova conjuntura desatada a partir da expansão do Covid-19.
CHILE: A REVOLTA POPULAR QUE ABRE UMA NOVA ETAPA
“(…) uma Assembleia Constituinte é o meio usado pelas classes privilegiadas quando uma ditadura não é possível, seja para prevenir uma revolução ou, quando uma revolução já aconteceu, para frear seu progresso com a desculpa de legalizá-la e retirar muitas das possíveis conquistas que o povo obteve durante o período insurrecional” (Errico Malatesta, 1930)
O povo chileno está há seis meses em revolta social na rua. De cima a baixo no país ocorreram protestos desde 18 de outubro, dia em que Santiago entrou em colapso. A gota d’água foi o aumento da passagem de metrô, e foi o movimento estudantil que incendiou o pavio da rebeldia. As catracas eram puladas por milhares de jovens diante das caras impotentes dos policiais. Rapidamente o protesto estudantil ganhou simpatias importantes dentro do povo, até que outros setores foram se somando na luta e o protesto pulou das estações de metrô para as ruas.
A repressão do Estado não se fez esperar: decreto de Estado de Sítio para Santiago e a região metropolitana. Mas a rebeldia se estendeu rapidamente e nos dias seguintes todo o país estava de pé e o Estado de Sítio e toque de recolher seria ampliado para todo o Chile.
Milhões de pessoas nas ruas ao longo desses seis meses – como ficou evidente no último 8 de março em Santiago – e também milhares de barricadas, assembleias territoriais, os movimentos sociais saindo às ruas, sindicatos em pé de luta – especialmente a União Portuária – e a realização de uma série de atividades e medidas de luta cotidianas. Entre elas, a ocupação da Plaza Italia (Praça Itália), transformada agora em Plaza Dignidad (Praça Dignidade).
O povo chileno disse basta a trinta anos de neoliberalismo, herança da ditadura. Assim se superava o medo e as pessoas saíam às ruas de forma massiva em TODOS os lugares, não apenas por uma demanda setorial, como vimos em importantes lutas estudantis, feministas, ecológicas etc. em anos anteriores.
Assim, esta crise do experimento neoliberal chileno pode se caracterizar como a resposta dos setores populares a uma radicalização dos níveis precarização da vida ou uma crise de reprodução da vida exercida a partir dos setores dominantes, e que há anos tem consequências concretas em nossos corpos e territórios. Os altos níveis de endividamento, a perda de direitos sociais, a superexploração, a flexibilização trabalhista, a inexistente previdência social, o saqueio da água e da terra, o aumento dos feminicídios só fizeram explorar essa panela de pressão de décadas de abusos e injustiças. A resposta da classe dominante não demorou para aparecer, tanto no plano repressivo quanto no plano político institucional. Imediatamente depois de a revolta ter começado, o Estado aprofundou seu caráter autoritário disfarçado de democracia. Já são conhecidos os números aberrantes que o terrorismo de Estado deixou na região: de acordo com os dados do Instituto Nacional de Direitos Humanos em fevereiro de 2020, são 3.765 pessoas feridas, 10.365 detidas, cerca de 2.500 presos e presas políticas, 411 pessoas com lesão ocular, 34 pessoas com olhos furados ou que perderam a visão, 1.541 violações aos direitos humanos denunciadas, das quais 192 correspondem a violência político-sexual e cerca de 40 pessoas mortas. Complementando isso, nas duas primeiras semanas de março, já tem mais três pessoas assassinadas por agentes do Estado, os quais ainda seguem mutilando, torturando e prendendo.
O governo e os partidos de direita buscaram uma saída que não apenas permitisse salvar o modelo neoliberal mas também o próprio sistema capitalista no Chile e idearam uma saída via reforma constitucional. A burguesia chilena estava disposta a “sacrificar” parte da constituição de 1990, herança da ditadura pinochetista. Mas só está disposta a maquiar essa constituição em uma assembleia constituinte. Infelizmente, essa proposta lançada de cima pra baixo foi aceita por diversas organizações de esquerda, que começaram a jogar no terreno que o sistema queria e necessitava.
Assim, a assinatura do acordo “pela paz e pela nova constituição” do dia 15 de novembro marca uma posição unitária dos partidos da ordem (conservadores, liberais e progressistas, da UDI até a Frente Ampla) a favor do Estado de Direito, da institucionalidade herdada da ditadura e a ameaça de uma possível ida dos militares para as ruas, mas dessa vez com impunidade garantida, diante da massividade dos protestos e da intensificação da ação direta no contexto de um chamado de greve geral no início de março.
O fato de que as manifestações continuem até hoje, apesar dos oportunistas de sempre, que mais uma vez se sentaram na mesa da burguesia para fazer pactos sobre as nossas vidas, marca um elemento importante dessa revolta e dá orientações a serem levadas em conta para o que vai vir nos meses seguintes. Apesar das tentativas por parte do bloco dominante de diminuir a confrontação social e os chamados de grande parte da esquerda para canalizar o descontentamento no processo constituinte iniciado de cima pra baixo, a profundidade da crise social manifestada nos altos graus de precarização da população e o descontentamento social como resposta a isso dificilmente vai ser controlada ou diminuída por algum pacote legislativo ou a injeção de recursos em alguma área prioritária (saúde, educação, previdência). No nosso entendimento, um dos grandes temas que sustentam a mobilização e a simpatia em relação a ela é a inexistência de direitos sociais, somada ao saqueio da água e à destruição dos ecossistemas.
São tempos de criatividade e audácia, o conflito vai continuar aberto e certamente vão se aprofundar as ações que reúnam, que unifiquem posições e que sejam voltadas para criar povos fortes. As ruas vão continuar cheias de gente, grande parte dos oprimidos e das oprimidas já aprenderam que a mobilização e a organização são chaves para a recuperação da vida. É tempo de gerar alternativas organizativas que apontem para o fortalecimento do protagonismo popular, para a organização e a ação direta e não, pelo contrário, caminhos constitucionais que vão oxigenar a dominação na região chilena.
Já sabemos que o que a princípio surgia, ao que parece, de maneira espontânea, onde nenhuma organização podia se autodesignar como porta-voz do movimento, foi se transformando em um período fértil para a politização de territórios, para a irrupção de novas organizações e diversas expressões de luta para os diversos problemas da vida social (e merece uma atenção especial o surgimento de assembleias territoriais em todos os cantos), onde além disso foram se legitimando a autodefesa, a ação direta e a manifestação como ferramentas de luta.
Por isso tudo dizemos que só vemos o “processo constituinte” como um processo restituinte, que vem só para dar uma saída institucional para o conflito e que, certamente, vai funcionar em função dos interesses da classe dominante. Esse processo vem para reconstituir o poder do Estado e suas instituições que estão em total descrédito depois da explosão da revolta. Portanto, esse processo é mais uma necessidade da burguesia do que dos oprimidos e das oprimidas.
Por conseguinte, apostar nesse processo constitucional no calor dessa revolta social não é nada além de entregar o destino desse movimento para quem nos oprime. Uma nova constituição não vai mudar as relações de poder na região chilena, nem é uma garantia de direitos sociais e de uma vida digna.
A pergunta que nos fazemos é: vamos fortalecer um processo institucional que vem de cima ou vamos colocar todas as nossa forças na construção de poder popular a partir de baixo? Logicamente, escolhemos essa segunda opção, sempre. A disputa não está no terreno das instituições, mas no que o povo é capaz de desenvolver para derrubar o sistema capitalista e ir construindo uma nova sociedade.
A etapa está aberta e as revoltas e manifestações populares que sacudiram grande parte da América Latina (além do Chile, também no Equador, no Haiti e na Colômbia) continuarão certamente em breve.
A única coisa que não tem futuro é continuar apostando, como faz parte da esquerda, no jogo dentro do sistema. Ali só se reivindica a democracia burguesa e o capitalismo e se votam leis repressivas, assim como aconteceu no Chile por boa parte dessa esquerda que pretende transformar algo com essas ferramentas que só servem para perpetuar uma ordem de privilégios.
A única saída é fortalecer o povo e suas organizações, abrir espaço para as lutas populares e construir uma Frente de Classes Oprimidas que reúna essas expressões e defenda a ruptura desse sistema injusto.
DIANTE DA PANDEMIA CAPITALISTA, SOLIDARIEDADE ENTRE OS POVOS
Vivemos um momento que parece constituir um ponto de inflexão histórico, uma nova cepa de um vírus da gripe, o SARS-CoV-2, que abala o mundo inteiro, fechando fronteiras, atingindo fortemente a economia global e causando a morte de milhares de pessoas. Nos parece importante, no Anarquismo Organizado, ir elaborando, ainda que preliminarmente, algumas análises e linhas de ação sobre os efeitos que esta crise está tendo e pode ter no campo social-político.
A aparição e propagação do vírus revela, mais uma vez, o fracasso retumbante do sistema capitalista, mostrando suas facetas mais cruéis, desumanas e perigosas para as classes oprimidas. Em primeiro lugar, demonstra que os avanços tecnológicos no âmbito da saúde não puderam prever nem frear esse fenômeno, revelando que os recursos sociais bilionários que as empresas farmacêuticas e de saúde administram não estão voltados para melhorar a qualidade de vida das e dos habitantes e prever doenças, mas apenas para aumentar seus lucros. Isso é um senso comum capitalista, mas que tem seus efeitos na crise de saúde que se está vivendo no mundo inteiro.
Esta pandemia não é um castigo divino ou um “teste para a humanidade”, é uma expressão da crise civilizatória-ecológica que açoita o nosso planeta. A manutenção dos lucros capitalistas faz com que ecossistemas inteiros sejam arrasados, a otimização faz com que sejam eliminados os genomas “não produtivos”, a mercantilização de corpos e territórios gera a possibilidade de que um vírus mortal elimine uma porcentagem considerável da população mundial e que isso seja um risco que se assume pela manutenção da economia mundial.
Estamos em um momento de quebra, em que a humanidade oscila entre a continuidade do sistema de dominação capitalista ou a vida.
Por outro lado, não é menor o fato de que o coronavírus tem efeitos devastadores sobre a população mais atingida nos últimos anos: a que tem mais de 60 anos. Isso tanto em termos de saúde, com a falta de vacinas, o aumento do preço dos medicamentos, o abandono de uma parte importante dos tratamentos, bem como do sistema previdenciário, que foi o setor historicamente mais castigado: uma referência imediata é a antipopular reforma da previdência de Macri de 2017, e sua modificação durante o atual governo, no caso da Argentina, a completa privatização da previdência no Chile, seguindo o modelo estadunidense, os cortes no orçamento do SUS no Brasil etc. O campo popular deveria, nesse sentido, buscar fazer com que sejam julgados como criminosas algumas das reformas mais recentes, pois disso se trata a eliminação do Ministério da Saúde no governo anterior da Argentina: um crime contra a saúde pública, que teve como consequência imediata o ressurgimento do sarampo, uma doença que tinha sido extinguida na América Latina. Nitidamente, a população adulta mais velha é a população que “sobra” em um sistema social que está colapsando. Com tudo que foi dito aqui, fica evidente que a vida e a saúde são um negócio, mais do que um direito.
Na região latino-americana, a classe trabalhadora mais precarizada e empobrecida vai ser, sem dúvidas, a vítima principal da situação gerada pera pandemia. Vão ser atingidas pessoas que não têm saneamento e água potável, vendo-se impossibilitadas de realizar muitas das medidas de higiene necessárias, as famílias aglomeradas em barracos e favelas não têm como fazer o isolamento preventivo, as dezenas de milhares de pessoas em situação de rua não contam com um lugar onde se resguardarem, as e os trabalhadores independentes que ganham seu sustento diário não têm como seguir os chamados ao confinamento, nem a população privada de liberdade que sofre com a aglomeração, os tratamentos cruéis e a desproteção planificada.
Em relação a isso, a história nos mostrou que, mais de uma vez, as doenças e o controle sobre os nossos corpos foram utilizados pelos diferentes Estados como arma em função de seus interesses imperialistas. Fora os conhecidos experimentos do nazismo, na América Latina houve casos emblemáticos como a inoculação da sífilis na população guatemalteca por parte do exército estadunidense. Essas aberrações só são possíveis em uma ordem social capitalista, e que nos faz duvidar da origem particular desse vírus dentro de uma das potências imperialistas que está disputando a ordem mundial. Diversas teorias têm circulado a esse respeito e revelam a crueldade do sistema e suas políticas imperiais.
A resposta de cima. Estados de Exceção
Junto com a crise sanitária que vivemos hoje, vale ressaltar os mecanismos que os diferentes Estados estão usando para conter a pandemia. Para o Anarquismo Organizado, este é um elemento chave para as projeções políticas que podemos realizar a médio e longo prazo. O pânico, o medo e a desorientação fortaleceram o discurso totalitário da crise sanitária. Nesse sentido, as medidas mais restritivas e repressivas ganham espaço no nível do Estado como as mais efetivas para conter um vírus que se espalha a milhares de pessoas todo dia, soltando um discurso bélico, patriótico e que ignora as classes sociais.
Nesse sentido, países com a capacidade de centralizar a economia e restringir duramente as liberdades de sua população, como é o caso da China, reforçam seu modelo de administração estatista do capital, diante de um neoliberalismo que está afundando na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, onde a impossibilidade de paralisar a economia faz com que qualquer medida de contenção ao vírus seja inócua. Consequentemente, assistimos a uma disputa dentro da classe dominante, onde o modelo de gestão neoliberal e centralista se batem em um duelo mortal para decidir quem vai liderar uma nova fase na história do sistema capitalista.
As classes oprimidas precisam estar alertas, o Estado de Exceção Permanente está se reforçando e os Estados do mundo colocam os militares indiscriminadamente nas ruas, dando para eles o poder de gestão, de planificação e de ação nessa crise. Um nítido exemplo disso é o atual toque de recolher instaurado na região chilena, que vai das 22 horas até as 5 da manhã, com a única função de controlar as ruas, reprimir e voltar a estar presente em bairros e avenidas onde desde a revolta social de 18 de outubro eles não tinham maior capacidade operativa. Hoje já são mais de 300 pessoas detidas pelo toque de recolher, que sem dúvida não são do bairro rico mas sim dos bairros populares. Algo parecido ocorre na Argentina, onde as pessoas detidas já são mais de 3.200, e também em outros países como Peru e Paraguai. Os militares nas ruas não contribuem com nada para controlar o vírus, são apenas a garantia de contenção contra uma classe oprimida cansada do governo e de sua política genocida.
Consequências sociais e mais repressão
O impacto social e econômico da rápida propagação do coronavírus está ficando evidente. Por um lado, sabemos que essa parada da economia mundial quem vai pagar seremos nós, os e as de baixo. Nos países onde o vírus está mais espalhado, ocorreram já demissões e redução de salários, sem falar dos efeitos arrasadores que isso está tendo nos setores de desempregados e precarizados. No Uruguai, nos primeiros dias, dos mais de 21 mil pedidos na previdência social, mais de 3.500 eram de seguro desemprego, quer dizer 15%. No momento em que escrevemos isto, os pedidos de auxílio previdenciário totalizam mais de 60 mil. Na Argentina, junto com a fragilidade econômica que é resultado da dívida pública, e a intenção do governo de pagá-la às custas do povo, vai se somar o dano gerado por esta pandemia, que expressa a fraqueza de uma ordem econômica que tem quase 50% da população na pobreza e uma taxa altíssima de trabalhadores e trabalhadoras precarizadas, a quem o isolamento está afetando demais ao serem restringidas suas fontes de sobrevivência. Da mesma maneira, o setor privado evidencia o saldo de demissões que a crise vai deixar para salvar os lucros patronais como fica evidente na tentativa de demissão de 1.500 trabalhadores e trabalhadoras da multinacional Techint na Argentina.
Enquanto se propaga o vírus, a classe dominante se trata em clínicas privadas com a melhor tecnologia disponível a um altíssimo preço e, por outro lado, nossa classe deve se tratar em hospitais onde faltam insumos médicos, funcionários e recursos. Enquanto nossa classe entra com medo no sistema de transporte entupido de gente, a classe dominante vai passar sua quarentena em suas casas de veraneio nas praias mais exclusivas. Enquanto a incerteza econômica ronda as casas da nossa classe, a burguesia estoca alimentos e produtos de higiene. Inclusive no Chile, comunidades inteiras não têm água para a higiene, como em Petorca, enquanto que nesses mesmos territórios os latifundiários e as transnacionais acumulam água para seus projetos extrativistas na produção e comercialização de abacate. Cabe destacar, no caso do Chile, que os exames de Covid-19 são pagos, custando 30 dólares aproximadamente, sendo o único país da América Latina que cobra pelo exame, ao qual, óbvio, só os setores abastados têm acesso.
Por outro lado, a restrição de direitos políticos de mecanismos de controle social mais agressivos avançam, ganhando consenso social como única forma de garantir o freio da pandemia. Tudo isso dentro do marco de uma suposta democracia que facilmente se transforma em Estados de Exceção, imitando as técnicas de controle da tão questionada ditadura do Partido Comunista Chinês.
Vejamos o caso argentino como exemplo: com o decreto de quarentena e isolamento social obrigatório que Alberto Fernández sancionou em 19 de março, se cristaliza o caráter repressivo da estratégia de contenção da pandemia. Foi anunciada a ida para as ruas de todas as forças repressivas, incluindo o exército. Configurando um virtual – por enquanto, já que pode ser estabelecido a qualquer momento – Estado de Sítio, deixando a população à mercê da violência diária que o aparato repressivo pratica com a desculpa de frear o avanço do vírus. Sabemos que esses dispositivos de controle social vão se encher de recursos e experiência, e não se sabe se vão ser desabilitados depois que acabar a pandemia. Acreditamos que, a não ser que se coloquem em funcionamento outras formas solidárias, elaboradas pelas de baixo, para conter a propagação do vírus, o controle e a repressão vão servir como mecanismo para “conter” também o possível descontentamento que os efeitos dessa crise vão gerar e que vão continuar depois que ela acabar. Enquanto isso, a colocação das forças repressivas por todo o território está deixando indefeso o grosso das organizações dos setores populares.
De fato, já houve uma amostra da repressão desatada por Rodríguez Larreta, prefeito de Buenos Aires, contra as e os camelôs, que resultou na morte da vendedora ambulante Beatriz Mechato, e a posterior detenção de Juan Grabois e mais 12 militantes da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP). Neste sentido, Alberto Fernández decidiu manifestar a decisão da quarentena geral com uma conferência pública junto não apenas com Rodríguez Larreta, mas também com o governador de Jujuy, Gerardo Morales, responsável pela prisão de Milagros Sala. Um ato carregado de simbolismo que busca mostrar a unidade da classe política na hora de defender e reafirmar a autoridade estatal nessas circunstâncias, deixando de lado qualquer diferença que exista em matéria de direitos humanos ou políticos. E nem é por acaso o sermão fascistoide de Sergio Berni, ministro de segurança da província de Buenos Aires, para a polícia daquela região, o que não fica nem um pouco atrás da questionada gestão da repressora Patricia Bullrich, ex ministra de segurança nacional argentina.
Na Argentina, já nos primeiros dias de quarentena se somaram milhares de detenções por andar na rua, o que demonstra a disposição dos governos provinciais e nacional para encher as delegacias e cadeias que já funcionam com grande níveis de aglomeração, gerando altos riscos de contágio, como ficou nítido pelos motins que os internos do presídio de Bower protagonizaram em Córdoba. Se aprofunda, então, o ataque aos Direitos Humanos que o kirchnerismo tanto exalta em sua retórica. Sobre isso, temos que ressaltar que a polícia que patrulha as ruas é a mesma que recentemente assassinou Santiago Maldonado, que a polícia naval que realiza os controles é a mesma que fuzilou Rafael Nahuel pelas costas e que as polícias provinciais são as responsáveis por milhares de casos de gatilho fácil de norte a sul no país.
As trabalhadoras na linha de frente
Se continuam trabalhando ou se estão em casa, as mulheres estão na linha de frente da luta contra a pandemia, mas também são as primeiras vítimas da crise sanitária atual.
A crise destaca o papel essencial de certos setores de atividade (saúde, educação, pré-escola, funções de cuidado, os setores agroalimentar e de distribuição, de limpeza, assistência social, transportes e entrega, etc.). No entanto, são mulheres, na maioria das vezes mal pagas e precarizadas, que trabalham principalmente na maior parte desses setores. Com essa crise, a população descobre de novo as profissões úteis socialmente, aquelas imprescindíveis e que respondem às necessidades essenciais de todas e todos.
Em todos esses setores, as trabalhadoras enfrentam uma dupla pena. Não apenas precisam continuar trabalhando com o risco de se contaminar e de contaminar sua família por falta de proteção adequada e de medidas de higiene evidentes, mas elas também passam por problemas com o cuidado de seus próprios filhos e filhas em razão dos horários atípicos e ainda mais quando estão em situação de família monoparental. A divisão desigual das tarefas não vai se resolver com o confinamento. Devemos lembrar que as mulheres garantem a realização da maioria das tarefas domésticas e do cuidado das crianças, e isso também quando estão casadas. No caso de que os pais estejam fazendo teletrabalho, é fácil imaginar como podem se dividir entre o casal as tarefas que já são realizadas pelas mulheres o resto do tempo! São as mães que acompanham os filhos e as filhas e ajudam nos deveres, e se acrescenta a isso a realização das tarefas domésticas que não deixam muito tempo de teletrabalho para as que podem fazê-lo.
O confinamento generalizado representa um risco a mais para as que sofrem violência doméstica. As associações especializadas, que acompanham as mulheres vítimas de violência, deram o alarme quanto a isso desde o anúncio do confinamento. A falta dos momentos de descanso que são os períodos de horário de trabalho fora de casa, tanto das vítimas quanto dos agressores, e a convivência contínua obrigatória vão matematicamente aumentar o número de atos de violência (seja psicológica, física ou sexual). Em um contexto de isolamento total, em que a palavra-chave é não sair (e sobretudo sem levar as crianças), sem possibilidades de se esconder para ligar para as associações e as linhas diretas, a vigilância e a intervenção dos e das vizinhas são cruciais. Mais do que nunca, a expulsão do cônjuge violento deve ser a regra para proteger as mulheres mas também as crianças, pois hoje, por exemplo na França, elas são testemunhas e também vítimas da violência machista.
Se o confinamento é necessário para frear a propagação da epidemia, ele não pode ser feito sem medidas específicas para as mulheres vítimas de violência patriarcal. Em todos os lugares, sejamos vigilantes e pratiquemos a solidariedade para que esse período de confinamento não seja insuportável para as mulheres.
Podemos dizer desde já: de nenhuma maneira as trabalhadoras vão pagar pela crise. Nem por um retorno massivo das mulheres para casa, nem pela fragilização do código trabalhista. Nossas lutas coletivas devem estar à altura das circunstâncias atuais!
Brasil: crise política a ponto de explodir no meio da pandemia
No Brasil, o governo de Bolsonaro continua com suas prédicas ultraliberais, burguesas, irracionais e anticientíficas no meio da pandemia de coronavírus. Bolsonaro, cada vez mais isolado, se opõe à quarentena social e enfrenta resistência dentro de sua base de apoio. Quando começou a crise do coronavírus, o governo flertou com tentativas golpistas, mobilizando suas bases reacionárias e militares em defesa de suas políticas ultraliberais e autoritárias contra o corrupto congresso brasileiro. Também mencionou o Estado de Sítio para agitar suas bases militares em meio à pandemia e receber apoio político. Ele continua com esse modelo de fazer política que usa a mobilização de sua base social de extrema-direita para alcançar seus objetivos reacionários e que, em meio à pandemia, reproduz teorias irracionais e conspiratórias de que o vírus é apenas uma histeria dos meios de comunicação.
A economia brasileira, já antes da pandemia, estava com baixo crescimento e gerando aumento do custo de vida. A total incapacidade do neoliberalismo brasileiro para mitigar os efeitos da crise dão melhores condições para que o povo brasileiro se oponha ao projeto neoliberal de Paulo Guedes e Bolsonaro a médio prazo, pois o discurso oficial do governo e o apoio dos meios de comunicação prometiam que, com os cortes no orçamento e o saqueio de direitos dos e das de baixo, a economia brasileira cresceria substancialmente. Mesmo com o desgaste da solução neoliberal, o governo de Bolsonaro foi incapaz de propor soluções fora de sua cartilha econômica, e continua defendendo que os trabalhadores e as trabalhadoras paguem pela pandemia. Pior do que isso, Bolsonaro e seus apoiadores mais fanáticos, junto com setores da burguesia, começaram uma campanha contra o isolamento social, com um discurso demagógico de defesa dos empregos e da economia. Embora não elabore nenhuma alternativa econômica para os e as de baixo e os setores precarizados, o executivo continua com a tensão de contraria as resoluções médicas e propõem o fim da quarentena.
A campanha “O Brasil não pode parar” foi impulsionada pela família Bolsonaro e a extrema-direita pela difusão massiva de fakenews nos softwares de comunicação e segue a lógica de que os e as de baixo paguem com a própria vida, com fome ou com seus salários, pela crise. Nos meios de comunicação, a ideia de impeachment começa a aparecer nos jornais e a classe dominante e a burguesia discutem silenciosamente opções para atualizar o marco de sistema de dominação, obviamente com perdas para a classe trabalhadora. Destaca-se também a crise do pacto federativo e a disputa entre setores da direita, com políticos dos estados brasileiros, em função de objetivos eleitorais, fazendo uma defesa do isolamento social em oposição à postura de Bolsonaro.
No campo da oposição, por parte da classe trabalhadora, a greve petroleira e as manifestações das mulheres em 8 de março começaram as lutas de 2020, mas a situação do coronavírus cancelou os protestos pela memória e a justiça no caso Marielle Franco e pela defesa de verbas para a educação, que poderiam ter fortalecido uma onda de protestos sociais contra o ajuste neoliberal e seus cortes brutais. Mesmo assim, ocorrem quase todos os dias panelaços contra o governo e a insatisfação dos e das de baixo produziu uma vitória com o aumento do apoio econômico para setores desempregados. Aumentaram também as pressões populares em defesa do SUS, precarizado ainda mais por Bolsonaro e que agora precisa receber verbas pela emergência sanitária.
A intensa precarização do emprego, com os e as de baixo trabalhando sem direitos trabalhistas, é uma catástrofe para a qual a pandemia traz a ameaça de fome para as e os de baixo. As mulheres são as mais afetadas pelo desemprego, representando mais da metade da população desempregada. E nas favelas, vilas e ocupações os riscos para a saúde das e dos trabalhadores são maiores, porém crescem ações de apoio mútuo e solidariedade entre as e os de baixo, como alternativa popular contra um governo antipovo. Começam também ações diretas populares, com saqueios de supermercados e o governo Bolsonaro enfrenta seu destino final com o avanço da crise e da pandemia.
Europa: centro atual da pandemia
Por outro lado, vemos como na Europa, onde também foram atacados os sistemas de saúde com medidas neoliberais e onde não se tomaram as precauções necessárias previamente à chegada do Covid-19, a pandemia causa estragos. Mais de 10 mil pessoas mortas na Itália e mais de 5.700 na Espanha, com números que só aumentam. Foram aplicados sistemas de controle de populações em grande escala: 15 milhões de pessoas confinadas no norte da Itália e a França também com uma circulação muito restrita demonstram nitidamente como os Estados aproveitam a situação para colocar em prática mecanismos de controle de populações em situações de crise, militarizando a vida social, aumentando a repressão e impondo outras medidas que nos fazem lembrar de épocas passadas, só que com um aperfeiçoamento dos mecanismos.
Enquanto isso, ocorre sem problemas, na Europa, a maior movimentação de tropas em uma manobra e treinamento militar nas fronteiras com a Rússia, da qual participam 20 mil soldados estadunidenses e 10 mil dos demais países da OTAN. Ali parece que não existe risco de contágio… É o desenho de um mundo hiper controlado ao extremo e militarizado com a finalidade de conter os protestos e revoltas sociais para que o capital faça a sua festa. A expansão desta pandemia lhes serve de desculpa para testar seus “mecanismos”.
Para completar esse retrato, em nível cultural também se manifestam os efeitos, com o reforço do individualismo, o perigo do “outro” e a cultura do “salve-se quem puder”, juntando a isso a busca por fazer de cada “cidadão” um potencial vigilante. Nesse contexto não surpreende a tendência da população que têm condições econômicas de estocar alimentos e víveres.
Definitivamente, o vírus está evidenciando a luta de classes: saúde pública colapsada, serviços sociais desatendidos, trabalhadoras precarizadas mantendo os serviços básicos enquanto os cargos diretivos se protegem em casa, expedientes de regulação temporal do emprego a cargo de fundos públicos em empresas milionárias, falta de testes para diagnóstico e meios de autoproteção para as classes populares e repressão às mais precarizadas para permanecer em casa, ou abusos policiais de todas as forças repressivas, garantidas pelo governo da Generalitat no caso da Catalunha e pelo Estado espanhol em geral. Enquanto isso, regras frouxas para ricos fugirem para suas segundas residências, para empresas que não são de primeira necessidade e que obrigam as funcionárias e funcionários a trabalharem com risco, para a classe alta e política que tem medidas sanitárias privadas à sua disposição, uso de hotéis como hospitais, entre outros fatos que nos levam a afirmar que a expropriação de infraestrutura é uma necessidade evidente e uma responsabilidade de classe e humana.
Estado de Emergência no Oriente Médio
O “Estado de Emergência” é o primeiro método utilizado para os Estados do Oriente Médio, que se transformou em cenário aberto de guerra durante muitos anos. Essas políticas, que se configuram de acordo com as necessidades dos Estados e dos capitalistas em vez que de acordo com as necessidades do povo, continuam durante o processo do Covid-19.
As mortes no meio da pandemia não são importantes para os Estados. Tomar medidas para o futuro acerca da população demitida é uma perda de tempo e de dinheiro para os Estados. O principal problema dos Estados e das empresas hoje é quais vão ser os efeitos econômicos da epidemia e como evitar uma rebelião social. As precauções e medidas tomadas são inteiramente em função disso: proibições de viagem, proibição de todo tipo de atividades, proibição de organização, toques de recolher, barreiras.
É óbvio que, com medidas autoritárias e militaristas, os primeiros setores aos que os mecanismos de controle vão se dirigir serão os setores excluídos ou que vão ser excluídos, como imigrantes, mulheres, desempregados, pessoas sem casa.
As pessoas que vivem em diferentes territórios no Oriente Médio são testemunhas de um processo em que os Estados vão se militarizando e se tornando mais autoritários.
Os sistemas de saúde após mais de 30 anos de neoliberalismo
A saúde pública foi objeto de repetidos ataques e reformas neoliberais, cortando suas verbas e desmantelando-a. Peguemos como o exemplo o Chile, laboratório do neoliberalismo. Ali a saúde pública está sendo desmantelada desde a ditadura de Pinochet e foi aprofundada sua mercantilização durante o pacto transicional. A transferência dos consultórios para as municipalidades, a concessão dos hospitais, a passagem (o saqueio) de recursos para clínicas privadas, os cortes orçamentários, a eliminação da saúde comunitária, a quebra do vínculo entre os bairros e seus centros de saúde, tudo isso gerou a crise atual da saúde, na qual sabemos que não existem nem as condições nem os meios para fazer frente a essa crise. Ainda nem chegamos ao pior cenário e já faltam recursos médicos e de segurança, além de funcionárias e funcionários, não há uma ampla oferta de leitos nem de respiradores, e consequentemente as classes oprimidas serão fortemente atingidas pela pandemia ao não poder pagar o tratamento e os cuidados adequados contra o vírus.
Em boa parte da Europa, a privatização sanitária dos últimos 10 anos que, ironicamente, também foi fruto de outra crise (a de 2008, caso tenhamos esquecido), deixou um panorama nefasto no âmbito da saúde. Milhares de centros hospitalares fechados, menos funcionárias e piores condições trabalhistas, entre outros fatores. Isso deixa em evidência que o modelo privatizador atual não é só um erro e uma fraude, mas que ele nos expõe e nos torna ainda mais vulneráveis como sociedade.
E agora? O Estado leva pessoas doentes para hospitais privados por falta de recursos nos hospitais públicos e as faturas somos nós que vamos pagar depois. Enquanto isso, batem palmas para as e os profissionais, pessoas que foram condenadas desde 2008 tanto pelo Estado espanhol quanto pela Generalitat da Catalunha, assim como em outros países do continente europeu e do mundo.
Tudo isso não é por acaso, óbvio, isso é parte da planificação da classe dominante, cuja mercantilização dos direitos sociais nos roubou até o direito de sermos atendidos em caso de doença. Mais do que isso, saber se está contagiada ou não depende da capacidade monetária de cada pessoa. Essa necropolítica de assassinato massivo contra os setores empobrecidos é a verdadeira cara do sistema de dominação.
Os efeitos de um sistema ecocida e genocida
O capitalismo é um sistema de dominação que despreza a vida humana. Estamos passando por isso neste momento, mas foi assim ao longo da história: as guerras, os genocídios, as políticas repressivas, a fome são algumas dessas cruéis políticas que o sistema realiza com seus procuradores e instituições encarregadas do “trabalho sujo”.
A isso temos que acrescentar a política de saqueio de recursos e a devastação do planeta. A política imperial que vem sendo aplicada desde a invasão da América por parte da Europa e depois, quando a Europa arrasou a África e a Ásia principalmente, acumulando as riquezas para o desenvolvimento do capitalismo monopólico e de seus Estados garantidores dele.
Hoje estamos em uma etapa cada vez mais concentradora do capital e tecnificada no que se refere ao saqueio. Hoje, 2.153 milionários possuem mais riqueza do que 4.600 bilhões de seres humanos, ou seja, mais do que 60% da humanidade. São constantes as migrações para a Europa de milhões de pessoas que sofrem as mais atrozes humilhações no caminho até a costa, para em seguida sofrer outras ao cruzar o Mediterrâneo, quando conseguem cruzá-lo. Ou vivendo em verdadeiros campos de concentração – que é no que se transformaram os campos de pessoas refugiadas – na Turquia, enquanto esse Estado ditatorial utiliza as e os migrantes como arma de pressão contra a Europa, para que ela lhe financie com dezenas de bilhões de euros. Assim, a Turquia de Erdogan tem fundos frescos para combater o povo curdo, fazer com que sua população viva sob Estado de Sítio constante e invadir a Síria ou agora a Líbia.
Com guerras, com invasões ou simplesmente com investimentos, o capital multinacional está devastando o planeta. Não se respeitam os ecossistemas como eles são, nem as reservas de água ou de florestas. Basta apontar para o que ocorreu na Amazônia com a “temporada de incêndios”, aplicada pela burguesia rural brasileira com total apoio de Bolsonaro e em outros países da região. O capitalismo não apenas mata gente, mas mata a natureza e, logicamente, dificulta com isso ainda mais a vida humana. O capitalismo só sabe semear terror e morte. É contra a vida.
Esboçando a etapa que se abre em escala planetária
Em materiais anteriores vínhamos analisando uma mudança na etapa, sobretudo por causa de importantes mobilizações que estavam acontecendo na América Latina e outras partes do mundo, mudança que continua em processo.
Agora, sem dúvidas, a pandemia do Covid-19 permite ao sistema capitalista uma importante reestruturação para tecnificar ainda mais seu domínio, o saqueio e o controle sobre povos inteiros. Os controles de populações que estão sendo praticados, impedindo os movimentos e controlado os deslocamentos das pessoas, a militarização de países inteiros, o Estado policial que está sendo aplicado em geral, as tecnologias aplicadas em matéria de segurança e que são empregadas com o argumento de “controlar a pandemia”, a proliferação de discursos racistas e ver o “outro” não apenas como um “inimigo” mas como um “vetor de contágio”, o fechamento massivo de fronteiras, o fechamento de mercados e a consolidação, pelos fatos, de grandes blocos ou zonas econômicas, ao mesmo tempo que os Estados exigem uma nova soberania que estavam dispostos a entregar até pouco tempo atrás para os organismos transacionais ou multilaterais, as mudanças nas formas de trabalho com a implementação do teletrabalho ou trabalho em casa em grande escala, a perda dos direitos sociais e empobrecimento ainda maior de grandes camadas da população mundial, a possibilidade para os capitalistas e seus organismos como o FMI e outros de aplicar suas propostas de reformas para continuar saqueando os direitos dos e das de baixo, são só alguns dos eixos que parecem se alinhar no desenho da etapa que está chegando. Uma sociedade hiper vigiada para ser saqueada.
Esta pandemia cai como uma luva na mão das classes dominantes de cada país e do mundo, para tomar as medidas que eles julgam ser necessárias para conter os protestos sociais em curso em vários pontos do planeta. Com o pretexto da pandemia, colocam o exército e todas as forças policiais na rua para reprimir o povo, quando na realidade o que é preciso são medidas de saúde pública e recurso colocados nisso, não na repressão.
Mas se abre uma etapa também em que é muito provável que as lutas populares ganhem novos estímulos: elas não vão parar nas manifestações no Chile, na França, na Colômbia ou em diferentes partes do planeta. Os povos estão nas ruas, a pandemia terá seu pico máximo e em seguida vai se voltar paulatinamente a uma certa “normalidade”, que não será igual à situação anterior, mas em que as pessoas vão retornar ao trabalho, vão retomar as atividades normais e os povos vão ganhar de novo as ruas e os campos.
A Resistência…
Expressões de resistência já estão acontecendo. Na Europa, houve panelaços durante a quarentena e greves em setores em que se tentava impor a continuidade do trabalho às custas da saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores, incluindo fábricas de grande porte e com sindicatos poderosos. Na Argentina, quem trabalha no setor comercial já se manifestou, exigindo o fechamento dos shoppings, assim como em outros âmbitos trabalhistas se discutem medidas de proteção da saúde. No Uruguai, o sindicato da construção conseguiu um acordo de licença especial, que em um primeiro momento o ministério da economia tinha feito fracassar. Do mesmo modo, o governo uruguaio defende um aumento de tarifas e dos impostos a partir de 1° de abril e as medidas para os setores que não têm previdência social são inexistentes no momento. Se realizam panelaços e uma infinidade de sopões populares nos bairros e por iniciativa de sindicatos também.
Acreditamos que para o que está vindo é importante ter em conta algumas linhas de ação, como a luta contra demissões, contra suspensões e contra reduções de salário, exigência de subsídios econômicos para setores precarizados e desocupados, bem como a garantia de acesso a alimentos e elementos de primeira necessidade, defesa do sistema de saúde pública, exigindo verbas maiores para o setor, assim como também melhoras nas condições trabalhistas de seus trabalhadores e trabalhadoras. É preciso garantir que o sistema de saúde privada seja colocado a serviço das necessidades populares, sem lucro, e apelar para a solidariedade entre os e as de baixo para conter a propagação do vírus, evitando o avanço do controle social. O mesmo pode se dizer da previdência social, que seja um serviço público e não esteja nas mãos de empresas privadas como as AFP no Chile ou AFAP no Uruguai, inclusive é preciso aumentar as contribuições patronais para que sejam os donos do capital que paguem o custo desta crise.
A pandemia e seus efeitos não surgem da natureza, mas de um determinado sistema que torna possível essa crise às custas da saúde e do bem-estar da maioria da população mundial. É urgente resistir a essa situação a partir de uma perspectiva revolucionária, articulando as lutas de hoje com a sociedade que sonhamos.
É evidente, nessa situação de extrema gravidade, que os povos continuam lutando na medida das suas possibilidades: panelaços, sopões, formas de solidariedade que se elaboram entre as pessoas de baixo, tudo isso bebe nas melhores tradições de luta e organização dos e das de baixo. Temos convicção de que a solidariedade e o apoio mútuo são nossas melhores armas enquanto classe, e organizadas territorialmente permitem construir no futuro. Estão sendo organizadas brigadas sanitárias em diversos lugares, que se encarregam do abastecimento de pessoas mais velhos e pessoas com diversidade funcional. É importante gerar e apoiar essas redes de apoio – assim como os sopões populares – além de outros esforços que permitam aos e às de baixo enfrentar essa crise da melhor maneira, incluindo as redes de apoio às mulheres e às crianças que sofrem violência patriarcal, problema que aumenta com o confinamento.
E crescem também os protestos pela vida, pequenas comunidades rurais e do litoral chileno cortam as estradas com barricadas para evitar que a classe alta chegue a suas fazendas e casas de veraneio. As trabalhadoras e os trabalhadores paralisam a produção realizando manifestações que exigem o fechamento de locais e a suspensão de atividades trabalhistas tanto na Europa quanto na América Latina. Toda essa determinação deve se transformar em uma GREVE GERAL PELA VIDA, que seja efetiva e sem hesitações.
Esta pandemia e seus efeitos abrem uma possibilidade importante para os povos: por um lado, nos permite uma crítica implacável ao modelo neoliberal e suas medidas aplicadas desde os anos setenta, defender com mais firmeza a saúde pública e a previdência social e todos os direitos e serviços sociais, reforçando as lutas em sua defesa e contra a privatização ou precarização, e o mesmo vale para o que se refere ao trabalho e às condições de vida. Esta crise permite uma crítica feroz ao sistema capitalista: crítica à propriedade privada, crítica ao Estado, às políticas de repressão, o desejo de lucro etc.
E, sobretudo, nos permite propor ou ao menos esboçar as novas relações sociais que queremos, a nova vida. De forma parcial ou global, permite que a gente reafirme cada vez mais o nosso projeto de sociedade socialista e libertária.
Para reduzir o dano social
A pandemia provavelmente foi o detonante da quebra e da crise financeira prevista há muito tempo por todos os e as economistas sérias. Após a crise de 2008, os Estados tinham pegado enormes somas dos fundos públicos para salvar os operadores e os bancos privados. Mais uma vez, a economia-cassino vai quebrar e será em proporções sem dúvida piores do que em 2008.
Com suas consequências de demissões e de subemprego, esta crise vai atingir em primeiro lugar as classes populares, que vão ter que enfrentar um aumento do desemprego, das meias jornadas, dos trabalhos precários, com uma redução do salário.
Para reduzir os danos, é preciso por um lado fortalecer a proteção social, para amortecer o choque, e por outro lado fazer com que o capital pague a conta. Isso supõe:
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a revogação da reforma do auxílio previdenciário e não apenas sua suspensão
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a revogação da destruição das previdências, e não apenas sua suspensão
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a prolongação dos prazos para poder abortar, por um período igual ao período do confinamento, para descongestionar os hospitais e antecipar as consequências previsíveis do confinamento
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a gratuidade dos transportes para reduzir as aglomerações e os vetores de contágio
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a proibição das demissões durante o período de confinamento, a manutenção do salário dos contratos particulares, dos trabalhadores substitutos, em contrato temporal e dos assalariados sem cobertura (contratista independente, uberizados em particular)
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requisitar as casas vazias, os Airbnb e semelhantes, os quartos de hotel, para proteger em condições de confinamento sanitário digno as famílias sem teto, as e os migrantes que sobrevivem em acampamentos cruéis ou trancados em centros de detenção, pessoas sem documentos que às vezes estão aglomeradas em casas ou ocupações insalubres
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para os salários baixos, uma moratória dos alugueis e as faturas de energia, de água, de telefone e de internet, a proibição de despejo. E uma renda básica para as pessoas em situação de pobreza
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Também é urgente realizar o controle social de toda a rede de saúde, com pleno orçamento e financiamento das instituições de cuidado, garantias e proteção de direitos aos e às trabalhadoras da saúde, do comércio, da indústria sanitária, logística e transporte, serviços públicos e população camponesa. É imprescindível fomentar uma cultura de vida e de solidariedade, de autoproteção e cuidado coletivo que nos permita superar a atual sensação de pânico e de “salve-se quem puder”. Essa é a chave para avançar na superação da atual conjuntura.
Para deter a epidemia também são necessárias medidas urgentes, talvez muito mais pontuais do que as elencadas acima, que incluem:
1 – Barreiras que não sejam medidas “de classe”, como o que está acontecendo hoje. O confinamento não pode depender da hierarquia social. Portanto, devem ser fechadas todas as empresas e serviços não essenciais, com a manutenção integral do salário dos trabalhadores e das trabalhadoras em parada técnica, incluindo aquelas com um estatuto precário (empregados temporais, subcontratos, autônomos etc.). Que os ricos paguem a crise! Que toda atividade econômica que não seja básica pare, que as empresas facilitem todos os meios para garantir o teletrabalho se for realmente necessário, e que nenhum trabalhador e nenhuma trabalhadora fique sem salário durante o confinamento. No caso das grandes empresas, esses salários podem sair de fundos públicos. E se se cobrassem mais impostos das grandes fortunas e empresas?
2 – Deve-se continuar o trabalho só nos setores vitais para a atenção médica, o abastecimento e à informação da população. Pensamos especialmente no sistema de saúde, no setor agroalimentar, nos transportes, na distribuição alimentar e sanitária, nos meios audiovisuais e na internet para difundir recomendações. Os trabalhadores e as trabalhadoras nesses setores estão na linha de frente: salvar a população recai sobre seus ombros. É preciso respaldar seu trabalho, começando por garantir o cuidado de seus filhos e filhas, com medidas de prevenção e de proteção.
3 – Ao mesmo tempo, tanto por razões de eficácia quanto para impedir os indecentes “coronalucros” dos beneficiários da crise, é preciso requisitar as empresas privadas desses setores e integrá-las no serviço público, colocando seu funcionamento sob controle da classe trabalhadora que é a mais capacitada para reorganizar as cadeias de produção e assim proteger-se do vírus.
4 – Além disso, é preciso reorganizar com urgência o conjunto da produção e dos serviços. A indústria e os serviços devem estar inteiramente voltados para a produção de material sanitário e de proteção, e a garantia dos meios de sustento para todos e todas. Se o Estado e os patrões não o querem, então cabe à classe trabalhadora impor isso.
5 – Esta crise nos demonstra que a saúde não pode ficar nunca em mãos privadas. Controle social dos hospitais privados e público-privados e de casas de idosos sem compensação com dinheiro público.
6 – Que os Centros de Internamento de Estrangeiros que foram fechados durante esta crise na Europa, evidência de sua farsa racista, não voltem a abrir nunca mais.
Os governos foram tomados de surpresa pela situação. Podemos impor algumas coisas para eles, mas somente se o movimento social e sindical botar a mão na massa e enfrentar os problemas sem vacilação. É portanto crucial que todos os trabalhadores e as trabalhadoras conscientes e determinadas se apropriem da ferramenta sindical para agrupar seus e suas colegas em bases solidárias e combativas.
A sociedade tem que mudar profundamente
Dizemos explicitamente: essas medidas de urgência são fragmentárias. Respondem à necessidade de parar a epidemia e de reduzir os danos sociais. Mas não vão impedir a crise econômica que vai ocorrer, porque esta é o resultado do capitalismo e da economia de mercado. O vírus provavelmente foi só o detonante. Diante dessa situação inédita, o capitalismo mostrou sua falha mas o Estado vai buscar manter com todos os meios o sistema econômico atual, inclusive tomar o controle do conjunto das atividades econômicas, realizando de maneira dirigista a organização da produção, requisitando esses meios ou valendo-se de outros mecanismos.
Para os governos, essa vai ser a única alternativa para o caos que a que levaria o “cada um por si”.
Para nós, anarquistas e comunistas libertárias da América e da Europa, as medidas emergenciais que propomos como responsabilidades que a classe trabalhadora vai impor, assumir e realizar hoje apresentam uma alternativa totalmente diferente. Nós temos outro projeto a defender: um projeto que se baseia na ajuda mútua e na igualdade, com uma organização estrita e planificada da produção e da distribuição dos bens essenciais, mas sob controle dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Pensamos que está na hora de repensar integralmente o funcionamento da sociedade, de modo que se satisfaçam as necessidades de todas e todos. Podemos encontrar formas e mecanismos de cuidado e de proteção da natureza para garantir a vida. Podemos acabar com este sistema, colocando todos os meios de produção e de distribuição nas mãos da classe trabalhadora, substituindo a economia de mercado por uma economia socializada e autogestionada, e o Estado por um sistema federalista autogestionado.
É necessário avançar por este caminho no meio desta crise, tecendo laços solidários entre as e os de baixo, fortalecendo organizações populares e construindo de fato uma verdadeira Frente das Classes Oprimidas que possa ser a articuladora das lutas de hoje e de amanhã, por uma sociedade socialista, libertária, federalista e com democracia direta.
QUE A CRISE NOS ENCONTRE QUEBRANDO NOSSAS CORRENTES!
HOJE, MAIS DO QUE NUNCA, SOLIDARIEDADE ENTRE A CLASSE TRABALHADORA E OS POVOS DE TODO O MUNDO!
PELO SOCIALISMO E A LIBERDADE!
¡ARRIBA LAS Y LOS QUE LUCHAN!
Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)
Federação Anarquista Uruguaia (FAU)
Federação Anarquista Rosario (FAR, Argentina)
Organização Anarquista de Córdoba (OAC, Argentina)
Federação Anarquista Santiago (FAS, Chile)
Grupo Libertário Vía Libre (Colômbia)
União Comunista Libertária (França)
Embat (Organização Anarquista da Catalunha)
Alternativa Libertária/ Federação Comunista Anárquica (AL/FdCA) (Itália)
Organização Libertária da Suíça (OSL)
Ação Revolucionária Anarquista (DAF, Turquia)